sábado, 28 de julho de 2007

Capítulo 5 - Apareceu Aparecida

Apareceu Aparecida

O salário não era lá essas coisas. E ainda mais com o desconto do minúsculo quarto sem janela e das refeições que era obrigada a fazer no próprio serviço, o que sobrava mal dava para a alimentação nos domingos, quando a loja e a facção ficavam fechadas. A solução para guardar algum dinheiro foi se contentar com apenas uma refeição no dia de folga. Assim mesmo, a gravidez de Erika chegara naquela fase em que a barriga crescia rapidamente. E isto, para ela, deveria ser escondido o tanto quanto possível. Não por causa dos programas, já que o expediente das 8h da manhã às 10h da noite a deixava sem energias para qualquer tipo de espichada. Seus motivos para ocultar a gravidez estava no temor de que isto fosse motivo para demiti-la como aconteceu com algumas amigas lá na sua cidade natal. Quando fosse descoberta até tinha um plano, do qual se ria sozinha ao lembrar dele: a idéia era jogar a culpa em Jacozinho, viciado em bolinar ela e as outras garotas da costura sempre que Dona Suen, sua esposa que não falava português, saia rua afora.

Enquanto dava para disfarçar, Erika aproveitava restos de tecidos, linhas, botões e elásticos para ir ajeitando as próprias roupas de forma a esconder sua condição. Nesse exercício quase que diário, ela foi rapidamente se aperfeiçoando em imaginar e moldar modelos de vestidos, camisas e calças próprios para o seu corpo em constante e transformação. Ela estava se revelando uma verdadeira artista e sua gravidez só foi revelada porque Jacozinho, lá pelo sétimo mês, resolveu utilizar sua mão boba por baixo dos panos cuidadosamente distribuídos. Tamanho foi o susto ao sentir a protuberância que ao retirar o braço acabou abrindo o camisão da moça, deixando-a nua da cintura para cima. Lembrando rapidamente do plano traçado, ela se levantou sem tapar o corpo e falou:

- Viu o que aconteceu? O filho é seu.

O coreano perdeu completamente o controle e não conseguia mais falar qualquer palavra em português. Na sua própria língua berrava algumas coisas ao mesmo tempo em que chorava e batia com as duas mãos na própria testa. Após alguns minutos daquela cena, Suen chegou correndo e depois de gritar coisas incompreensível e cortar o rosto de Jacozinho com suas enormes unhas, avançou em Erika, pegando-a pelo longo rabo-de-cavalo e atirou-a para fora da loja com tanta violência que ela rolou em pleno chão da José Paulino, perdendo os sentidos, tamanha foi a dor. Lógico, o burburinho na frente do estabelecimento atraiu a atenção de todos os vizinhos e transeuntes. Mais alguns instantes e lá estava a polícia tentando dispersar a multidão revoltada com o brutal tratamento a uma grávida. Enquanto Érika, ainda desacordada, era colocada na ambulância, um fiscal do trabalho que casualmente passava por lá foi verificar o registro de empregados, enquanto os guardas preparavam a prisão em flagrante.

Ao abrir os olhos, Erika se viu em um ambiente completamente estranho. Estava deitada em cima de uma engenhoca cheia de tubos e fios, alguns dos quais estavam colados ao seu corpo ou muito próximos dele, como aquele que soprava um vento gostoso direto na sua boca e nariz. Na volta tinha outras camas parecidas tomando espaço daquele quarto com pouca luminosidade, mas todo branco. Tentando se localizar, levou a mão à barriga para fazer sua costumeira brincadeira de sentir os pontapés do nenê. Mas apesar de inchada, sentiu na hora que o seu interior estava vazio. O grito desesperador chamou a atenção de todos daquele local que não estavam sedados ou em coma. Diante do alarme, Dagmar e Rosa Maria deixaram de lado a partida de pontinho e foram correndo ver o que se passava. Habituadas a aquele tipo de manifestação, ao ver que não conseguiriam controlar o surto de Erika, amarraram suas pernas e braços nas barras do leito e administraram, via soro, um sedativo o qual agiu rapidamente.

Passadas mais algumas horas, novamente acordou, mas estava demasiadamente grogue para demonstrar todo o desespero. Apenas conseguia gemer e choramingar baixinho. Naquele ambiente isto foi o suficiente para ser ouvida. Dagmar, com grande calma e ternura, pegou sua mão e falou pausadamente.

- Você está em uma maternidade para grávidas de risco. Fomos obrigados a fazer uma cirurgia de emergência, pois você tinha uma hemorragia que, se não fosse contida, iria lhe deixar em situação muito difícil. Erika, me ouça: para ficar boa é necessário que você fique em repouso e não se mexa. Afinal de contas, estamos cuidando de uma linda menininha que vai precisar de uma mamãe bem forte e saudável.

Ao ouvir as palavras finais, Erika, mesmo sem poder falar, conseguiu sorrir e suas lágrimas passaram a ser de emoção e não mais de desespero. Dagmar ainda complementou:

- sua filha nasceu aproximadamente seis semanas antes de completar o nono mês. Por este motivo ela está em observação em nossa CTI para prematuros. Se você se comportar terá forças para vê-la dentro de uma semana. Por ora o melhor é dormir. Quando pudermos diminuir seus remédios, vamos te ensinar a tirar leite para alimentar a menina.

Ao mesmo tempo em que ouvia isto, Erika novamente começava fechar os olhos sob o efeito de mais uma dose de sedativo. Mas dessa vez iria dormir em paz.

O rosto de Erika era realmente lindo, daqueles que não se sabe precisar a idade; podendo tanto pertencer a uma jovem, como a uma mulher mais madura. Na verdade, ela estava para completar dezesseis anos, mas a vida na vida acabou fazendo-a amadurecer precocemente. Parecia e se comportava como mulher feita. A recuperação foi bem mais rápida do que o esperado. Na quarta noite já tirou por conta própria os elétrodos grudados com gel no seu corpo e se pôs a caminhar pelos arredores segurando o soro. Logo encontrou a sala de descanso dos plantonistas e viu Dagmar e Rosa Maria sentadas, tendo uma pequena mesa entre elas, onde estava espalhado o baralho do pontinho. A primeira, sem perder tempo, se levantou decidida a levar Erika de volta para a cama. Mas a colega prontamente segurou seu braço e piscou o olho, enquanto perguntava para a paciente:

- Você quer sentar conosco?
- Posso?
- Claro, só que vamos colocá-la na cadeira de rodas e acomodar melhor este seu soro.
- Tá legal. Vocês estão jogando pontinho?
- Sim, você sabe como é?
- Sei sim. Eu, minha mãe e minha tia sempre jogávamos quando estávamos juntas. Apostávamos grãos de feijão.

Dagmar, acabando de ajeitar Erika na cadeira de rodas, ainda teve tempo de comentar, enquanto juntava o baralho:

- Aqui o jogo é sério. Vale palitos de fósforo

Com o intervalo de alguns cuidados especiais que deviam ser dispensados aos pacientes, a noitada se prolongou até o nascer do dia. O expediente encerrava às 7 horas. Uns vinte minutos antes, ajeitaram tudo, o que incluiu devolver Erika para o seu leito. O encontro entre as três passou a se repetir em todos os plantões, mesmo depois de a paciente ter saído da UTI para o quarto e depois para o alojamento das mães com crianças hospitalizadas.

Em paralelo ao festival de carteado, Érika finalmente pôde conhecer a filha. Ela era ruiva como Angélica. Sem dúvida, a menina tinha puxado a família paterna. Isto fez Erika desistir da idéia inicial de homenagear a mãe. Foi registrada como Aparecida, logo apelidada de Cidinha pelas amigas enfermeiras.

Perto de tudo que tinha acontecido nos últimos anos, a vida no hospital sempre foi lembrada com grande carinho e até prazer. Mas Erika sabia que aquelas férias iriam acabar. Precisava imaginar um jeito de ganhar a vida. As duas cicatrizes das cirurgias de emergência estavam com aspecto chocante e isso não era nada bom para atrair clientes. O jeito seria tentar conseguir outra vaga de costureira no Bom Retiro. Ela gostava do trabalho em si, mas tinha medo de novas confusões, além do salário ser muito baixo para sustentar a ela e Cidinha. Mas a sorte estava virando a seu favor.

No mesmo dia em que soube da provável alta da filha naquela mesma semana, recebeu duas visitas. A primeira foi de um sujeito bigodudo e mal cheiroso que se dizia seu advogado. Falou no processo que os dois poderiam mover contra a loja de Jacozinho. Bastava ela lhe passar seus documentos e assinar uma procuração que já estava pronta e estaria tudo praticamente resolvido. Em algumas semanas eles teriam o dinheiro na mão. Erika, então, lembrou de uma das lições mais insistentes de Elise: nunca assinar qualquer coisa sem entender perfeitamente o que está escrito no documento. Assim, não dizendo uma palavra, começou a ler o texto, que dava plenos poderes ao advogado, além de conter incompreensíveis regras sobre honorários.

- Olha Doutor, vou pedir para minhas amigas darem uma olhada nesse papel. Podemos conversar amanhã?

O advogado, ao ouvir aquela resposta, transformou seu semblante, passando a fazer diversas ameaças caso ela não assinasse, o que incluía o confisco da filha. Erika, mesmo assustada, aprendeu na vida que de nada vale se manter acuada e armou seu próprio barraco, chamando a atenção de todos que estavam nas proximidades da recepção do hospital. Foi uma feliz coincidência o fato de naquele exato momento Dagmar e Rosa Maria estarem chegando juntas para o plantão da noite. De pronto elas posicionaram ao lado da paciente, o que acabou provocando a rápida retirada do advogado, não sem antes recuperar violentamente o documento e sumir porta afora.

Acalmando-se com a rodada noturna de pontinho, o carteado teve como tema central a história de Erika, mas sem os relatos mais picantes da vida de prostituição. Isto acabou sendo contado aos poucos, nos anos que se seguiram. Estava nascendo uma sólida amizade entre as três, que se propagaria futuramente no mundo dos negócios.

Coincidência ou não, no dia seguinte outra cena fora do comum: Erika estava saindo do refeitório do hospital, quando passando novamente pela recepção se deparou com Jacozinho e Suen, cercados de quatro crianças. Ao vê-la, os dois se ajoelharam e começaram a chorar, ao mesmo tempo em que proferiam palavras incompreensíveis. Aquela imagem chocante foi quebrada pela intervenção de uma senhora, também de traços orientais, trajando elegante tailleur.

- Senhora, a sua frente está uma família que lhe pede perdão. Meu povo é recém-chegado a esta terra e queremos prosperar em paz. Para provar isso vim aqui pronta para lhe compensar por todos os transtornos que o Sr. Haiata ( verdadeiro nome de Jacozinho) e sua esposa lhe causaram. Dentro desta bolsa que lhe presenteamos está uma amostra da nossa generosidade, em troca do seu perdão.

Erika abriu o presente e verificou que o conteúdo tratava-se de vários e generosos maços de dinheiro. Em princípio ficou impressionada e mal conteve a alegria. Mas logo lembrou de que já estava há dois meses sem sair da maternidade e, conforme o costume, o valor daquela as notas diminuía rapidamente. Assim, ela não sabia precisar se todo aquele papel valia muito ou pouco. Era a tal da inflação. O bom senso a mandava aceitar o mimo e tentar conseguir alguma coisa mais, já que na situação de menor de idade, as coisas poderiam se complicar para ela e a filha. Assim, usando todo o português educado que Tia Beti lhe ensinara, tomou a palavra:

- Apesar de eu e minha filha, que talvez seja também de Jacozinho, quase termos morrido por causa da surra de Dona Suen, sempre fui ensinada a perdoar. Mas minha saúde acabou ficando prejudicado (dizendo isto mostrou por baixo da blusa uma das cicatrizes cirúrgicas ) e preciso de condições para um novo começo.

- Seja mais clara. Estamos dispostos a ajudá-la na medida do razoável.

- Ontem veio aqui um advogado dizendo que, com os serviços dele, eu poderia ser a futura dona da loja. Não gostaria de que isto acontecesse. Mas agora sou mãe de família e não posso pensar só em mim. Agradeço o presente, mas acho que o meu perdão vale muito mais do que isso.

- Diga logo a sua proposta; não estou aqui para perder tempo.

- Está bem, quero uma máquina de costura nova, outra de overloque, mais três anos gratuitos naquele sobrado que está para alugar na Rua dos Italianos.

- Você está exagerando. Saiba que temos outros meios não tão simpáticos para lhe convencer a não nos importunar.

- Então está certo. Pegue seu presente de volta e hoje à tarde meu advogado irá na José Paulino conversar com vocês.

Ao ouvir esta resposta; fruto da mistura de sabedoria e malandragem adquirida ao longo dos últimos anos, a porta-voz da família novamente se dirigiu a Erika com um tom mais respeitoso, e pediu licença para conferenciar com Jacozinho e Dona Suen.

A cena que se seguiu foi até engraçada. O casal, que permanecia de joelhos, em posição de humildade, se levantou e os três começaram a discutir aos gritos, sendo que de vez em quando o marido ainda levava doloridos cascudos na cabeça, ministrados pela furiosa esposa.

- Insistimos para que a Senhora aceite o nosso presente. Quanto ao nosso acordo, garanto que tudo estará providenciado até a próxima segunda-feira. É uma imensa alegria poder contar com o seu perdão, honrada dama. Esqueça seu advogado e não atenda a ninguém que se diga fiscal do trabalho. A família lhe é grata do fundo da alma.

Erika não pôde conter seu sorriso maroto. Ao ouvir aquelas palavras que lhe resolviam a vida, assistia divertida a demonstração de gratidão do fundo da alma da família de Jacozinho e Suen. A imagem que ficou para sempre gravada na sua mente era composta do marido e a esposa trocando eventuais tapas no rosto em idioma incompreensível, enquanto as duas crianças mais novas choravam e a menina mais velha não parava de chutar as canelas do pai.

Quando eles foram embora do hospital, pouco depois, todos os que ficaram se deliciaram com o silêncio que retornava.

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