domingo, 15 de julho de 2007

Capítulo 4 - Érika

Capítulo 4 – Érika

A placa da carreta era de Campo Grande. Assim, quando resolveu acompanhar João Carlos, Érika imaginou que com o caminhão vazio como estava, em um dia, no máximo dois, conseguiria finalmente estar no aconchego da tia bondosa. E a pressa de conseguir um lar aumentava. Os enjôos dos últimos dias não tinham relação alguma com a repulsa à vida na estrada. Não havia mais dúvida, era nenê que estava para chegar. Lembrou, então, das várias vezes que a mãe havia lhe contado a história do seu nascimento. Numa festa junina Elise, ainda menor de idade, havia dançado com quase todos os rapazes conhecidos. Mas nenhum era verdadeiramente do seu agrado, apesar de todos os pedidos de namoro. Quando a festança estava mais para o final, ela reparou num homem jovem, desconhecido e que não lhe tirava olho. Sem saber porque, liberou o sorriso que realçava sua bela e carnuda boca. Logo depois de um copo de quentão, estavam dançando aos beijos. Esta era a última coisa que Elise se lembrava até acordar do lado da rodovia, com os joelhos e braços esfolados e o vestido todo rasgado. Na madrugada, ao chegar em casa, foi imediatamente socorrida pela irmã mais velha. O pai olhando para o aspecto da filha não esperou para adverti-la de que, caso tivesse pego barriga sem honra, ela estaria no olho da rua.


O caso acabou virando um dos assuntos favoritos da cidade, sendo que a cada dia aumentava o número dos que declaravam nas mesas de bar ter participado do "batizado" de Elise. Com o tempo a história foi sendo esquecida, e somente Luis, sujeito metido malandro, mas sempre quebrado, levantava novamente a lebre, relembrando e se gabando do evento no qual nunca esteve, na verdade. Isso foi o suficiente para que anos mais tarde o juiz de menores tivesse lhe atribuído a paternidade de Erika, após o falecimento da e.


Com a gravidez confirmada Elise foi expulsa da casa paterna, levando consigo apenas a roupa do corpo. Apesar de muito jovem ela tinha a consciência de que uma nova vida estava para chegar. Era necessário encontrar algum lugar para morar e conseguir um meio de vida. Graças à irmã foi possível arranjar emprego na mercearia do bairro rico, com parte do salário sendo descontado para pagar o aluguel do quarto dos fundos do prédio. E nasceu Erika. Passados alguns anos a mãe era gerente do estabelecimento e conseguira economizar o suficiente para comprar um terreno e iniciar a construção da sua a própria casa. O dinheiro que faltou foi financiado por um dos programas de habitação do governo federal. A partir daí a vida da mãe e da filha foi realmente feliz, sem contar a alegria das duas visitas anuais de tia Beti, que morava em Campo Grande.

De uma certa forma, repetindo a história da mãe, Erika olhou para a própria barriga e espontaneamente falou:

- Nós também vamos ser muito felizes. E eu prometo que não vou morrer.

João Carlos pensou que aquelas palavras fossem dirigidas a ele. Casado e pai de três filhos, afora uma produção fora de casa que havia causado a maior encrenca, não queria mais confusão na sua vida. Assim, depois de ter cobrado os serviços da garota na noite passada em Dourados, usou o argumento de uma carta de frete para São Paulo e foi a deixando lá mesmo.

São Paulo, a cidade grande, terra das oportunidades que todos falavam. O encontro com Tia Beti podia ficar para o futuro. Sem perder tempo, Érika usou sua arma secreta: um carinho especial aprendido com uma colega de babado. Colocando o caminhoneiro fora de si, foi dizendo:

- São Paulo, é? Aposto que vou gostar de lá. Vou com você, ?

Completamente rendido, o pobre do pai de família que pretendia levar uma vida mais comedida depois da última aventura fora de casa, não teve como não adiar por mais algum tempo os seus planos. Abriu a porta de seu velho Mercedes 1313 vermelho, embarcou a moça e ainda teve a sorte de carregar a caçamba com milho para a capital paulista. Foi meio estranho que o carregamento tenha demorado demais para ser feito, com algumas sacas sendo acondicionadas com todo cuidado no início da pilha. Passadas algumas horas, a dupla novamente ganhou a estrada. Mesmo podendo chegar ao objetivo no final do dia seguinte, João Carlos não resistiu em aproveitar a situação ao máximo. Afinal de contas, estando no inferno o melhor é abraçar o diabo, pensava ele. A rota acabou sendo feita no triplo do tempo previsto.

Finalmente, após quase uma semana de pouca estrada e muita parada, eles estacionaram dentro do depósito no Brás, conforme orientava a documentação. Ao desligar o motor do caminhão os portões do prédio estavam quase totalmente fechados. João Carlos e Erika repentinamente se viram cercados por uns oito homens, três dos quais apontavam armas na direção deles. Seguindo o mando do gordão, desceram do veículo e esperaram, sem reação, pela sorte. De início apenas foram colocados em duas cadeiras de plástico no canto do depósito com ordem de permanecerem quietos. Ficaram assim, ainda vigiados por um sujeito armado, enquanto os outros se apressavam descarregar a caçamba e o gorducho dava ordens para separar algumas sacas. Com um canivete abriu uma delas para verificar o conteúdo: algo que parecia tijolos verdes, como se fosse erva prensada. Diante daquele quadro, Erika não conseguia encontrar senso, ainda mais que João Carlos ao ver a saca aberta ficou visivelmente apavorado.

Com a carga toda descarregada os bandidos pareciam ter ficado mais tranqüilos. Mas isto não evitou que puxassem o motorista para um canto e lhe aplicassem uma severa surra. Enquanto isso acontecia, o sujeito de corpo avantajado pegou Érika pelos cabelos e, ao saber que não era a mulher nem filha do transportador, a arrastou para a pequena porta de saída do depósito, lhe lembrando várias vezes que ela nada tinha visto. Qualquer suspeita de delação e a moça apareceria boiando junto com o lixo do Tietê.

Não entendendo nada daquilo, o importante é que finalmente estava na rua. Caminhou apenas algumas quadras e se tranqüilizou ao encontrar uma grande feira ao ar livre, que não tinha nem comparação com aquela que uma vez por semana acontecia na sua cidade. Seguiu andando no meio daquele mar de gente e sorriu ao imaginar como Aparecido reagiria a tudo aquilo. Um dia teria que reencontrá-lo, pois o seu futuro filho ou filha haveria de ter um pai verdadeiro.

Com o dinheiro que tinha guardado procurou uma pensão, disposta alugar algum cômodo por pelo menos duas semanas. Mas os preços de São Paulo eram bem maiores. Além do mais, a cada dia as notas podiam comprar menos coisas e novas cédulas eram lançadas com valores cada vez maiores. Érika sabia que dinheiro no bolso era dinheiro jogado fora. O negócio era gastar o quanto antes. Na casa com os piores quartos conseguiu pagar antecipado quatro dias de estada, sobrando mais algum para comprar comida e um vestido novo na feira. O trabalho na rua não tinha como durar muitas semanas. Logo sua barriga iria crescer, o que espantava os clientes. Certa disso, a futura mãe trabalhava o tanto quanto podia à noite e durante o dia andava pela cidade na busca de alguma oportunidade.

E foi assim, depois de uns vinte dias vivendo na cidade grande, que passeando pela rua José Paulino, no Bom Retiro, encontrou, defronte a uma loja, o papel do outro lado da vitrine que dizia "Aceitamos costureiras com pouca prática; oferecemos acomodação". De uma certa forma, era reiniciar a vida da sua própria mãe. Naquele mesmo dia se mudou, sendo aceita no emprego graças ao conhecimento de costura aprendido nas visitas de Tia Beti e uma leve ajuda da sua arma secreta, aplicada no coreano que todos chamavam de Jacozinho...

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