terça-feira, 14 de agosto de 2007

Capítulo 7: O Comando

O Comando

Após Érika sair do depósito, a surra continuou. A última lembrança de João Carlos foi ter passado a língua entre os dentes e sentir falta de vários deles. Depois disso, mais um soco entre os olhos e tudo se apagou.

Ao acordar a dor era intensa por todo o corpo. Tentou enxergar alguma coisa, mas só via uma luminosidade disforme. Tateando os arredores se descobriu na cabine do próprio caminhão. Então, apesar de tudo, ficou mais feliz e tranqüilo. Afinal de contas, estava vivo e melhor; era pouco provável que os bandidos não voltassem para matá-lo, já que haviam tido toda chance para fazer isso. Era coisa para festejar depois. Naquele momento o único interesse era encontrar, pelo tato, o relaxante muscular que sempre guardava no porta-luvas do Mercedes. Engoliu dois comprimidos de uma só vez, mesmo sem a ajuda de água, e esperou as dores aliviarem e o sono chegar.

Com a cabeça acomodada no lado do banco onde Érika sentava, sentiu o cheirinho da caroneira, e ficou excitado. Sangrando, sem dentes, todo dolorido, praticamente sem enxergar e ainda pensando em rapariga, raciocinou João Carlos, isto é que é ser mesmo um sujeito incorrigível. Após tal reflexão o sono tomou conta novamente, mas soprava uma brisa gelada. Sem forças para se levantar e fechar os vidros do veículo preferiu esticar o braço para baixo do banco e puxar a coberta e o travesseiro que sempre estavam no por lá, na espera para serem usados.

A próxima sensação foi a de um calor de rachar. Com a garganta seca, João Carlos novamente abriu os olhos. As imagens estavam mais nítidas, mas a claridade incomodava muito. Dos males o menor: nada que aquela legítima imitação de Ray-ban não resolvesse. Os óculos escuros ficavam sempre acomodados em cima do quebra-sol.

As dores os braços ainda eram intensas, mas já não tão fortes a ponto de impedir-lhe os movimentos. Então, não teve grandes dificuldades em executar a tarefa. Auxiliado pelas lentes verde escuras, o caminheiro reparou que estava estacionado em uma rua de paralelepípedos. Ao redor, algumas casas de madeira intercaladas por terrenos baldios e logo na frente, a placa do Bar do Zé, diante do qual três homens tomavam seus martelinhos, enquanto jogavam dominó. Desceu do Mercedes com dificuldade. Além do corpo dolorido, o movimento era desagradável pela grande quantidade de sangue coagulado em várias partes do corpo. Entrando pela porta do estabelecimento e se dirigindo diretamente ao balcão, um sujeito muito gordo e com um bigode exagerado já o esperava com toalha, sabonete e uma caixa de primeiros socorros contendo gaze, esparadrapo e mercúrio. Zé, sem perder tempo, apenas apontou para João Carlos a direção do banheiro.

Do chuveiro elétrico não saia muita água. Mas com paciência acabou sendo possível lavar o corpo e verificar o estrago, que foi considerável, especialmente no rosto, pelo que mostrava o pequeno espelho que ficava no sanitário. Além do olho que não abria direito, o outro estava cercado por hematomas. A boca inchada escondia os restos de uma dentição que sempre fora perfeita.

Mas o importante era estar vivo. E aparentemente os ferimentos, apesar de feios, não pareciam tão graves. Na verdade, além de implantes feitos quase um ano depois do evento, João Carlos ainda teve de se sujeitar a duas cirurgias de reconstituição facial, além de outra para a retirada do menisco do joelho esquerdo. Voltando ao bar repleto de esparadrapos, a turma do dominó não escondeu a risada. Ainda mudo, o dono do boteco apontou para o caminhoneiro, indicando uma mesa para ele se sentar, na qual lhe esperava um prato de comida e uma garrafa de refrigerante.

Foi com muita dificuldade que João Carlos conseguiu mastigar a refeição. Mas ele sabia que aquilo era importante para recuperar as forças. Ao agradecer a acolhida e negociar o preço do almoço e do uso do banho, Zé apenas lhe virou as costas e ficou assim até que o caminhoneiro saísse do estabelecimento.

De volta ao 1313, a primeira coisa que reparou foi fato de a caçamba estar completamente carregada e coberta por uma lona novinha. Ao tentar afrouxar as cordas para verificar o conteúdo da carga, ouviu um assovio que vinha da mesa do dominó. De lá, enquanto um dos homens se fazia com a mão o sinal do negativo, os outros dois lhe apontavam armas de grosso calibre. Pronto, já sabia que a encrenca não havia terminado. A única forma de sobreviver era simplesmente dançar conforme a música. Lentamente, buscando a aprovação do grupo, subiu novamente na cabine do caminhão. No assento estava um pacote e em cima dele um papel, no qual havia o seguinte recado rabiscado: "Agora você trabalha para a gente. Esta carga vai ser entregue em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. Saia daí agora e vá direto para a Dutra. Pare no km 300 que, colado atrás da placa de quilometragem, haverá novas instruções para você. No pacote está o pagamento pelo serviço anterior. Aproveite. Mas não abra o bico e nunca mais dê carona, mesmo quando não estiver de serviço conosco. Tenho certeza de que você não gostaria de me ver brabo novamente. Estamos de olho. Então, nada de bancar esperto”.

Sem pensar duas vezes, o motorista ligou o motor e partiu rumo ao seu destino. Chegou no lugar marcado um pouco depois da meia-noite. A saída de São Paulo estava costumeiramente congestionada, ainda mais com a chuva torrencial que caiu no final da tarde, o que sempre causa atrasos. Estacionou no acostamento e foi atrás da placa verificar se realmente tinha algum recado para ele. E lá estava uma folha de caderno dobrada, colada com fita isolante. Com a ajuda da lanterna pôde ler o conteúdo do bilhete. Era o endereço detalhado da entrega da carga em Nova Iguaçu, com a instrução de fazer o trajeto com o farol esquerdo desligado.

A operação para desatarraxar a lâmpada demorou quase uma hora. Depois disso seguiu viagem, dando preferência para andar em comboio, já que a sua visibilidade estava duplamente prejudicada: além da deficiência do farol, seu olho direito ainda estava bastante prejudicado, chegando a comprometer sua percepção de perspectiva tridimensional, fundamental para uma pilotagem segura. Passados uns 40 km do reinício da viagem, o grande susto: uma barreira policial estava desviando todos os caminhões para o acostamento. Acostumado com essa prática, João Carlos automaticamente tirou do bolso os documentos do veículo. Mas começou a pensar: sem documentação da carga (sabe lá Deus o que era); o farol desligado; e a sua cara espancada. Tudo isso era um prato cheio de incomodações.

De pronto decidiu que caso fosse parado iria se antecipar, entregando-se às autoridades e tentar esclarecer toda a confusão. Realmente, o primeiro policial que o viu não perdeu tempo em mandá-lo estacionar. João Carlos parou o caminhão e já foi abrindo a porta para tentar se explicar ao homem fardado com colete. Mas antes que conseguisse desembarcar, um segundo guarda lhe fez um nervoso sinal para seguir adiante. Rapidamente ligou novamente o motor e seguiu a instrução, passando por todos os colegas de estrada que, aparentemente, sem exceção, estavam tendo a documentação e carga conferidas.

O resto do caminho foi feito sem contratempos. Chegou em Nova Iguaçu no início da manhã e já que as instruções não permitiam companheiros na caçamba, ficou impedido de pegar os serviços de algum chapa com conhecimento da cidade. O jeito foi ir pedindo informações até o endereço marcado. A busca chegou a demorar mais de 1h e meia, mas finalmente havia encontrado a rua enlameada, lotada de barracos, além de um esgoto que corria a céu aberto. Na medida em que avançava lentamente, apareciam de todo lado homens portando fuzis e metralhadoras, ao mesmo tempo em que moleques preparavam rojões, prontamente disparados após a sua passagem. Não havia como voltar atrás. O jeito era seguir em frente para ver aonde ia dar toda aquela encrenca. Mais meio quilômetro e se deparou com cavaletes que trancavam o seguimento da rua. Junto à barreira, um sujeito muito magro aparentando entre 55 e 60 anos orientou a manobra de entrada no depósito (que mais parecia uma maloca) logo à direita. João Carlos chegou a tremer de medo quando os portões fecharam. Se ele estava marcado para ser morto, o momento seria aquele.

Mas a surpresa foi grata: o mesmo gordão que havia liderado a surra de dois dias antes estava lá e foi prontamente conferir a carga. Verificando que tudo estava correto, abraçou o caminhoneiro e o apresentou a todos ao redor como seu novo irmão, que deveria ser chamado de Carlito. E caminhando na direção do fundo do depósito abriu outra porta que dava acesso a um ambiente muito mais agradável. Tratava-se de uma piscina em volta da qual se espalhavam cadeiras preguiçosas, poltronas e outros móveis, muitos dos quais ocupados por mulheres de corpo atraente que centravam suas atenções ao redor de dois homens, aparentemente na faixa dos 30 anos. Por fim, outras duas mulheres vestindo uniforme surrado de coelhinha, circulavam pelo ambiente oferecendo bebidas e quitutes.

Ao reparar na entrada do caminhoneiro com a cara deformada, todas as moças se levantaram e falaram em coro:

- Seja bem-vindo Senhor Carlito.

Após esse rápido cerimonial, uma mulher parda e cabelos encaracolados se aproximou, apresentando-se de forma mais íntima.

- Olá, sou Shirley e estou feliz por ter sido escolhida como sua primeira companheira de nosso Comando. Minha função, além de te tratar bem - e farei isto com todo o prazer – é explicar como funcionam os nossos negócios e o seu papel na organização. Até segunda ordem, a partir de agora, eu é que transmitirei as ordens do chefe e você não deve falar sobre serviço com mais ninguém além de mim. Outra coisa: já localizamos sua família em Campo Grande e eles concordaram em receber uma mesada para ficarem calados enquanto você não volta para casa. E meu bem, tenho certeza de que vais querer ficar comigo e minhas amigas pelo resto da vida. Agora é hora de deixar o papo para mais tarde e descansar.

Shirley pegou João Carlos, ou seja, Carlito, pela mão e o conduziu a um quarto com cama de casal redonda, refrescado por ar-condicionado e o fez deitar, fazendo ela o mesmo, abraçando-o na altura do peito. Pouco tempo depois o novo membro do Comando dormia a sono solto.

O tempo voa e num piscar de olhos Carlito comemorava a entrada de 2007 com champanhe francês a bordo de seu iate, normalmente atracado em Angra dos Reis. Shirley havia sido uma ótima professora e agora era mãe de duas filhas suas. Além disso, o antigo caminhoneiro mostrou grande habilidade para os negócios do Comando. Deixou as estradas em 1992, apenas dois anos após ter entrado para a organização. Em vez de conduzir caminhões, aproveitou o dinheiro ganho e comprou uma grande frota, criando sua própria transportadora, que também dispunha de aviões e fazendas espalhadas pela região Norte e Centro-Oeste do país, sempre a pouca distância das fronteiras com a Colômbia, Bolívia, Peru e Paraguai.

Usando como fachada o transporte de grãos e mudanças, comandava um verdadeiro império do frete de armas e drogas dentro da América Latina. Tal poder lhe gerou muitas amizades no meio político brasileiro e dos países em volta. Suas gordas contribuições às campanhas eleitorais, além do monitoramento a opositores, rendiam, em troca, carta branca para agir livremente em várias regiões estratégicas.

Mas agora, no começo de 2007, as coisas começavam a ficar mais difíceis. A rivalidade de outras gangues não era problema no seu caso. A grande questão do momento passou a ser um fenômeno novo. Ex-policiais haviam se rebelado contra a repressão abusiva imposta pelos chefes de boca de fumo das favelas e passaram a reagir, mesmo estando desligados da sua corporação. Com conhecimento de técnicas de combate, conseguiram seus próprios fornecedores de armas e passaram a trocar tiros com os traficantes, ao mesmo tempo em que recebiam apoio em dinheiro da população das favelas.

No total, a operação de Carlito ainda era lucrativa, especialmente porque as milícias no norte da Amazônia estavam pedindo muito armamento pesado. O problema é que parte do pagamento era em cocaína e o produto estava cada vez mais difícil de escoar pelos canais de distribuição tradicionais. Com criatividade e contratando meninos e meninas de família da Zona Sul do Rio, ainda era possível bancar o negócio. Mas o lucro era muito menor e alguns políticos estavam dando um jeito de trocar de lado, o que era o mais preocupante ainda.

O Comando estava dividido em suas opiniões e isso sempre era perigoso. Os mais antigos eram favoráveis a sair gradativamente do negócio, limpando as principais empresas de fachada que se tornaram lucrativas por si só. Porém, os líderes que ainda não tinham feito fortuna pensavam diferente; estavam dispostos a pegar em armas e matar os inimigos, fossem eles ex-policiais ou parlamentares traidores. As duas visões de futuro eram evidentemente incompatíveis e não demoraria para que isso acabasse em luta interna. Neste caso, João Carlos passava a ser um dos alvos preferidos para acabar a sete palmos.

Como tentativa de apaziguar os ânimos, a cúpula do Comando - da qual Carlito participava - arquitetou a Operação Carnaval, que deveria ocorrer no meio das festas carnavalescas, quando todo o Rio de Janeiro se esquecia temporariamente de suas disputas dedicando-se aos festejos na Marquês de Sapucaí.

O plano era composto de três estágios. Caso primeiro desse errado se passaria para o segundo e assim por diante.

Como meta inicial, a idéia era negociar a paz com as milícias das favelas que antes eram dominadas por traficantes rivais. O Comando não atacaria a eles, conquanto que os ex-policiais não interviessem nos seus pontos de comércio ainda ativos em outras favelas. Junto com tudo isso, haveria ainda venda de armas de primeira linha a preços favorecidos, derrubando a concorrência.

Caso a negociação não desse certo, a segunda alternativa seria fazer um ataque fulminante aos líderes jovens do próprio Comando. Para isso, não seria difícil contar com apoio de alguns segmentos da própria polícia. Mas todos deveriam estar monitorados para serem baleados praticamente na mesma hora. Na lista, havia 15 marcados para morrer. Apenas uma falha, ou vazamento de informação, e o feitiço viraria contra o feiticeiro.

Por fim, o último estágio, caso os dois anteriores dessem errado seria largar tudo e embarcar no Sêneca pronto para fugir na direção da Argélia. Daí, o melhor seria aproveitar as reservas depositadas nos paraísos fiscais para usufruir de uma rica aposentadoria, ou reiniciar os negócios depois de uns anos, se ainda houvesse espaço para isso.

domingo, 5 de agosto de 2007

Coisas da Moda - Capítulo 6

Coisas da Moda - Capítulo 6

No sábado, Érika foi avisada de que a alta de Aparecida estava marcada para o dia seguinte। Isso era um problema na medida em que ela só receberia, conforme fora combinado, as chaves do sobrado da Rua dos Italianos na segunda-feira. Claro, com o dinheiro conseguido na negociação com a representante de Jacozinho, era até barato alugar um quarto por alguns dias.

Mas no hospital a filha estava sendo muito bem tratada, especialmente pelas vaidosas madrinhas, Dagmar e Rosa Maria. As três amigas haviam chegado a um consenso no qual a ausência de padrinho dava direito a menina ter madrinha em dobro. Aproveitando este novo parentesco, acabou não sendo difícil adiar a alta por alguns dias, necessários para limpar e conseguir a mobília mínima necessária para a nova moradia. Na segunda-feira pela manhã, cumprindo à risca o acordo feito, a mulher do tailleur, cujo nome não havia sido identificado, foi ao encontro de Érika, passando diretamente às suas mãos as chaves do imóvel tratado.

- Aqui está. Nossa parte do acordo está cumprida. Acho que não preciso lembrar que você faz parte de um pacto que não pode ser quebrado jamais. Estamos de olho. Não faça besteiras; não temos o hábito de perdoar traições.

- Fique tranqüila. Sou de palavra. Mas não quero Jacozinho me importunando de novo. E se ele não baixar a bola, vai acabar se complicando com as outras meninas da facção.

- Isto já está sendo cuidado. O Sr. Haiata e esposa estão proibidos de se aproximar de você. Mas também lhe digo: deixe em paz a nossa comunidade. Não a desejamos como nossa amiga; e garanto que você não nos quererá como inimigos. Adeus.

Aquelas últimas palavras chegaram a amedrontar Érika que parou de lidar com a situação como se ela fosse uma negociação divertida. Mas o temor logo cedeu espaço para questões mais práticas. Entregou a filha ao berçário e foi direto conhecer a casa nova, não sem antes passar rapidamente no supermercado para comprar material de limpeza.

Chegando no endereço ela tirou do bolso o molho com três chaves: duas do tipo reforçado e a outra mais comum, que destrancava a maçaneta. Abrindo a porta, nem teve tempo de suspirar. Reparou no corredor à direita que desembocava na área térrea de aproximadamente 40 m2. Logo na frente havia uma porta de correr vertical que dava diretamente para a rua.

Compreendeu que o seu sobrado era acompanhado por um respeitável espaço para loja, o que gerou um fervilhar de idéias. Ainda pensando no que fazer com aquele inesperado presente, subiu as escadas com vassoura e balde em punho, e eis que se depara com mais uma bela surpresa: o apartamento composto de dois quartos, sala, banheiro, cozinha e lavanderia estava tão limpo e bem cuidado, que lembrava a quase apagada da memória casa na qual viveu seus anos mais felizes ao lado da mãe.

Mas agora a sorte novamente estava lhe sorrindo. Com o tempo economizado da faxina desnecessária, dedicou o resto do dia às lojas de móveis e eletrodomésticos usados, onde comprou geladeira, fogão, cama, sofá e duas mesas especiais para acomodar a máquina de costura e de overloque que estavam encaixotadas no canto da sala.

A despeito de tanta coisa adquirida, a bolsa continuava ainda cheia de dinheiro. O acordo havia saído muito melhor do que a encomenda, e Érika não cogitava deixar de cumprir a sua parte. Na terça-feira tudo já estava pronto para levar Aparecida. Mas por comodidade, a mudança ocorreu no dia seguinte. Era 15 de março e o Brasil inteiro estava em festa. Afinal de contas, estava assumindo o primeiro presidente brasileiro eleito democraticamente em vários anos.

Entretanto, o clima entusiasmado da manhã, já havia se transformado em desespero generalizado no Bom Retiro à tarde. Fernando Collor de Mello havia anunciado o confisco da maior parte do dinheiro depositado em bancos de todos os brasileiros, com seu plano de combate à inflação. Logo depois, na entrevista em que a equipe econômica de governo deveria explicar melhor o que estava sendo feito (e não conseguiu) muitos entraram em pânico.

Curiosa, Érika pegou a filha no colo e foi andar pelas ruas. Era uma loucura: um pedindo ou cobrando dinheiro do outro; mas de nada adiantava, pois improvável que naquele tempo alguém carregasse grandes valores no bolso. Isso seria como jogar dinheiro no lixo, já que a inflação tirava o poder de compra diariamente. No meio daquela bagunça, Erika não conseguiu deixar de sorrir ao lembrar da sua bolsa ainda abarrotada.

Ali ela percebeu novamente que o mundo estava conspirando a seu favor. Se todos queriam dinheiro vivo e isto era coisa rara, é claro que ele passara a valer muito de uma hora para outra. Voltando para a nova casa, ela buscou se acalmar e pensar na melhor maneira de gastar as centenas de notas que estavam em seu poder. A idéia inicial era fazer como sempre: gastar tudo logo de início para aproveitar o valor do dinheiro, antes que se esvaísse. Mas meio sem saber o porquê, resolveu deixar a bolsa quietinha até o início da próxima semana. E ela entendeu perfeitamente o que significou aquela notícia do rádio sobre o sujeito que vendeu o apartamento de luxo por apenas 10% do valor que lhe tinham oferecido uns dias antes.

Uma das últimas aulas de matemática, antes de largar a escola, a foi sobre proporções e percentuais, e incrivelmente a matéria ainda estava bem fresca na memória. Coisas de boa aluna...

Na segunda-feira seguinte, acomodou Cidinha em uma espécie de mochila de frente, especial para carregar nenês (que havia feito para testar as máquinas), de acordo com o modelo visto numa revista de Angélica, e foi para a rua iniciar sua aventura de compras. Entre o curto trajeto de casa e o atacado de tecidos da José Paulino foi parada mais de cinco vezes por mulheres querendo saber onde ela havia comprado aquela curiosa peça. E sempre, ao dizer que era ela mesmo que havia feito, perguntavam o preço. Usando da sua esperteza, a cada vez fixava um valor maior, oferecendo entregar a peça no dia seguinte. Até finalizar o caminho para a loja, Érika já tinha quatro encomendas. Não perdeu tempo e ainda naquela manhã mandou produzir algumas centenas de cartões com seu nome e endereço.

Finalmente, chegou no atacado, cujo caminho passava pelo estabelecimento em que trabalhou. Jacozinho e sua esposa estavam perto da entrada e lhe fizeram uma reverência à maneira dos orientais, que foi correspondida com um sorriso e aceno de cabeça de Érika. Caminhou mais alguns metros e sem olhar para trás ouviu mais uma vez os gritos agudos de Suen e os estalados de tapas na cara do marido, cujo tom de voz parecia um lamento naquela língua incompreensível.

Não pode deixar de achar engraçado e chegou ao seu destino com lágrima nos olhos de tanto rir. E no Atacadão Xavier, ao contrário do costume, estava tudo quase às moscas. Enquanto passeava em meio a rolos de tecido, identificou dois possíveis clientes tentando comprar alguma coisa com cheques pré-datados; mas parecia que não iriam conseguir. Mesmo carregando a criança, ela estava com um ar de moleca, que pareceu incômodo à gerente do estabelecimento.

- Você pretende comprar algo, ou está matando o tempo? Temos muito o que fazer na loja, se você me entende.

Sem perder o bom humor de quem sabe que tem o poder nas mãos, Érika apenas respondeu.

- Eu estava pensando em comprar alguma coisinha, mas se eu incomodo, peço desculpas. Acho que vou atravessar a rua e ver como estão os preços das peças na loja da frente. Um bom dia para você.

- Espere. Você quer comprar mesmo? Como pretende pagar?

- Ainda não tenho certeza (ao mesmo tempo em que falava isso tirava um generoso março de notas estrategicamente colocado no bolso traseiro da calça jeans).

- Que-ri-da! Muito prazer! Meu nome é Sônia e sou a gerente da loja. Terei a maior honra em lhe atender.

Chegara, então, a hora de Érika bancar a antipática.

- Ok, vamos ver o que você tem de bom e como estão seus descontos para pagamento à vista. Só que não disponho de muito tempo porque tenho encomendas para aprontar até o final da tarde.

- Não é época de liquidação. Mas você está com sorte. Não fizemos ainda os reajustes de preços desde a semana passada. Lembrando a história do apartamento vendido a 10%, a nova negociadora não titubeou.

- Está bem, vou fazer cotação aqui e em mais três atacados. Viro cliente de quem fizer o menor preço.

- Vamos ver o que podemos fazer. Mas entenda que os tempos estão difíceis.

- Engraçado, para mim os tempos estão fáceis e maravilhosos (tirando falsamente sem querer mais um maço de dinheiro do outro bolso).

- Admiro muito as pessoas que pensam positivo; para a frente. Vamos ver tudo o que você quer e depois lhe faço um bom desconto.

Ao mesmo tempo em que iniciava a negociação com a gerente, Érika reparou em dois homens fortes carregando rolos de tecidos para um pequeno caminhão estacionado logo em frente. Circulando em volta deles estava um senhor de meia-idade que ora pedia mais uma semana para pagar a dívida; ou protestava dizendo que a quantidade de produto que estava sendo retirada da loja era várias vezes maior do que o valor do empréstimo feito ao agiota na semana anterior para pagar o adiantamento quinzenal dos funcionários.

Aquela não era uma oportunidade para ser desperdiçada. Deixou Sonia falando sozinha e foi direto conversar com aqueles homens. Usando seu jeito de menina ficou sabendo dos cobradores que a dívida era de 50.000 cruzeiros; mas Seu Xavier dizia, quase aos prantos, que a mercadoria embarcada valia pelo menos oito vezes aquele valor. Fazendo rapidamente as contas, Érika propôs, ao ver que o carregamento estava concluído:

- Pago 55.000 cruzeiros por toda aquela mercadoria (abrindo a bolsa cheia de dinheiro e deixando todos boquiabertos). Mas vocês entregam no meu endereço. Para os capangas do agiota o mais importante era conseguir cobrar o dinheiro; e para Xavier o prejuízo seria um pouco menor. Fechado negócio, a garota ainda comprou uma série de outros itens, como linhas e elásticos, negociando bons descontos. Mesmo pagando tudo na hora, a bolsa ainda continha mais da metade de seu conteúdo. Mas de forma esperta ela conseguiu esconder isto dos negociadores.

Ainda naquela manhã a peça térrea do sobrado estava abarrotada. Agora o trabalho seria transformar tudo aquilo em roupas para vender. No mesmo dia teve tempo de fazer as quatro encomendas acertadas, devidamente entregues. A única dificuldade foi refazer parte da peça da terceira cliente, bem mais alta e rechonchuda em comparação as outras, que tinham um corpo parecido com o seu. Aquilo lhe fez prestar ainda mais atenção no que havia descoberto durante sua própria gravidez. Com as costuras certas e alguns outros truques, todo o corpo feminino pode ficar mais atraente do que realmente é.

Aquela primeira semana de vida intensa na rua dos italianos não arrefeceu. Ao contrário: o sucesso da mochila para carregar bebês rapidamente se espalhou pelo Bom Retiro. Érika acordava antes do sol nascer para dar o vencimento às encomendas que eram entregues e de vez em quando remodeladas entre às 14 e 17h de cada dia.

Na primeira visita dominical de Rosa Maria e Dagmar, as conversas foram na ao redor da máquina de costura. Ao mesmo tempo em que papeavam, Érika montava suas mochilas e as duas enfermeiras jogavam pontinho. Cidinha cresceu em volta do que virou o costumeiro encontro entre a mãe e as madrinhas. A mudança ocorria na sala de baixo.

O estoque de tecidos era cada vez mais concentrado no fundo para dar espaço a novas máquinas de costura e overloque, onde costureiras trabalhavam, de início em dois, mas depois em três turnos para atender às encomendas que não paravam de crescer. Ao final do segundo o ano de aluguel gratuito do imóvel, Érika, já maior de idade, resolveu abrir mão de seus benefícios provenientes do acordo com os coreanos e fez uma generosa oferta pelo sobrado, que inclusive compensava o tempo em que ficou morando lá sem gastar um centavo.

Ela que já tinha conquistado o respeito da comunidade do bairro, passou a ser uma figura admirada. E com isso o número de clientes, especialmente lojas, aumentou ainda mais. Assim, em janeiro de 2007, enquanto Cidinha estava na dúvida entre seguir a carreira de modelo ou fazer vestibular para direito, Erika se olhava no espelho satisfeita consigo própria. Ainda jovem, com trinta e poucos anos, era uma empresária de sucesso e suas criações começavam a ser comentadas nas altas rodas paulistanas.

A sua marca, a Corpo Luz, ganhou fama de milagrosa. As mãos de Érika, que só produzia pessoalmente no caso de encomendas especiais, cada vez mais caras (para a linha de produção ela desenhava os modelos e a administração ficava por conta de Dagmar, já aposentada do hospital. Rosa Maria se dedicava às vendas para lojas, demonstrando grande talento para isto). Seu dom era reconhecer as minúcias de cada tipo de corpo e saber usar os tecidos de forma a ressaltar o mais belo e corrigir as imperfeições. Naquele mês, uma das encomendas que atendeu foi de uma moça preocupada em esconder as gorduras flácidas da barriga.

Satisfeitíssima com o serviço, Inês foi correndo para casa tirar uma foto da nova silhueta e enviar por e-mail para seu noivo - um dos responsáveis pelo cálculo estrutural de administração de soldas da linha 4 do metrô de São Paulo, em construção - com o sugestivo recado almoça comigo?. Gumercindo ao receber a mensagem e admirar a imagem gostosa, se apressou para encontrar a moça. Disse aos colegas que tinha um compromisso urgente e para marcar o ponto em que estava o seu trabalho do dia, atribuiu uma distância esdrúxula entre as vigas de sustentação destinadas a receber solda, para chamar a atenção do ponto a recomeçar na parte da tarde do expediente.

Alguns minutos após a sua saída, um estagiário chegou a sua mesa a mando do chefe para cobrar o envio da planta. Na ausência de Gumercindo, ele próprio enviou via rede o trabalho inacabado para o patrão. Não resistindo à curiosidade abriu a foto minimizada na tela e viu a imagem de Inês, em pose de sedução. Pensando besteira, foi direto para o banheiro, sem sequer deixar recado do que havia feito. E no dia 12 de janeiro de 2007, o histórico desastre ao lado da Marginal Pinheiros provocou o surgimento de enorme cratera na capital paulista. As causas do acidente foram atribuídas a uma sucessão de erros e excesso de chuvas. Mas o assunto nunca foi integralmente esclarecido

sábado, 28 de julho de 2007

Capítulo 5 - Apareceu Aparecida

Apareceu Aparecida

O salário não era lá essas coisas. E ainda mais com o desconto do minúsculo quarto sem janela e das refeições que era obrigada a fazer no próprio serviço, o que sobrava mal dava para a alimentação nos domingos, quando a loja e a facção ficavam fechadas. A solução para guardar algum dinheiro foi se contentar com apenas uma refeição no dia de folga. Assim mesmo, a gravidez de Erika chegara naquela fase em que a barriga crescia rapidamente. E isto, para ela, deveria ser escondido o tanto quanto possível. Não por causa dos programas, já que o expediente das 8h da manhã às 10h da noite a deixava sem energias para qualquer tipo de espichada. Seus motivos para ocultar a gravidez estava no temor de que isto fosse motivo para demiti-la como aconteceu com algumas amigas lá na sua cidade natal. Quando fosse descoberta até tinha um plano, do qual se ria sozinha ao lembrar dele: a idéia era jogar a culpa em Jacozinho, viciado em bolinar ela e as outras garotas da costura sempre que Dona Suen, sua esposa que não falava português, saia rua afora.

Enquanto dava para disfarçar, Erika aproveitava restos de tecidos, linhas, botões e elásticos para ir ajeitando as próprias roupas de forma a esconder sua condição. Nesse exercício quase que diário, ela foi rapidamente se aperfeiçoando em imaginar e moldar modelos de vestidos, camisas e calças próprios para o seu corpo em constante e transformação. Ela estava se revelando uma verdadeira artista e sua gravidez só foi revelada porque Jacozinho, lá pelo sétimo mês, resolveu utilizar sua mão boba por baixo dos panos cuidadosamente distribuídos. Tamanho foi o susto ao sentir a protuberância que ao retirar o braço acabou abrindo o camisão da moça, deixando-a nua da cintura para cima. Lembrando rapidamente do plano traçado, ela se levantou sem tapar o corpo e falou:

- Viu o que aconteceu? O filho é seu.

O coreano perdeu completamente o controle e não conseguia mais falar qualquer palavra em português. Na sua própria língua berrava algumas coisas ao mesmo tempo em que chorava e batia com as duas mãos na própria testa. Após alguns minutos daquela cena, Suen chegou correndo e depois de gritar coisas incompreensível e cortar o rosto de Jacozinho com suas enormes unhas, avançou em Erika, pegando-a pelo longo rabo-de-cavalo e atirou-a para fora da loja com tanta violência que ela rolou em pleno chão da José Paulino, perdendo os sentidos, tamanha foi a dor. Lógico, o burburinho na frente do estabelecimento atraiu a atenção de todos os vizinhos e transeuntes. Mais alguns instantes e lá estava a polícia tentando dispersar a multidão revoltada com o brutal tratamento a uma grávida. Enquanto Érika, ainda desacordada, era colocada na ambulância, um fiscal do trabalho que casualmente passava por lá foi verificar o registro de empregados, enquanto os guardas preparavam a prisão em flagrante.

Ao abrir os olhos, Erika se viu em um ambiente completamente estranho. Estava deitada em cima de uma engenhoca cheia de tubos e fios, alguns dos quais estavam colados ao seu corpo ou muito próximos dele, como aquele que soprava um vento gostoso direto na sua boca e nariz. Na volta tinha outras camas parecidas tomando espaço daquele quarto com pouca luminosidade, mas todo branco. Tentando se localizar, levou a mão à barriga para fazer sua costumeira brincadeira de sentir os pontapés do nenê. Mas apesar de inchada, sentiu na hora que o seu interior estava vazio. O grito desesperador chamou a atenção de todos daquele local que não estavam sedados ou em coma. Diante do alarme, Dagmar e Rosa Maria deixaram de lado a partida de pontinho e foram correndo ver o que se passava. Habituadas a aquele tipo de manifestação, ao ver que não conseguiriam controlar o surto de Erika, amarraram suas pernas e braços nas barras do leito e administraram, via soro, um sedativo o qual agiu rapidamente.

Passadas mais algumas horas, novamente acordou, mas estava demasiadamente grogue para demonstrar todo o desespero. Apenas conseguia gemer e choramingar baixinho. Naquele ambiente isto foi o suficiente para ser ouvida. Dagmar, com grande calma e ternura, pegou sua mão e falou pausadamente.

- Você está em uma maternidade para grávidas de risco. Fomos obrigados a fazer uma cirurgia de emergência, pois você tinha uma hemorragia que, se não fosse contida, iria lhe deixar em situação muito difícil. Erika, me ouça: para ficar boa é necessário que você fique em repouso e não se mexa. Afinal de contas, estamos cuidando de uma linda menininha que vai precisar de uma mamãe bem forte e saudável.

Ao ouvir as palavras finais, Erika, mesmo sem poder falar, conseguiu sorrir e suas lágrimas passaram a ser de emoção e não mais de desespero. Dagmar ainda complementou:

- sua filha nasceu aproximadamente seis semanas antes de completar o nono mês. Por este motivo ela está em observação em nossa CTI para prematuros. Se você se comportar terá forças para vê-la dentro de uma semana. Por ora o melhor é dormir. Quando pudermos diminuir seus remédios, vamos te ensinar a tirar leite para alimentar a menina.

Ao mesmo tempo em que ouvia isto, Erika novamente começava fechar os olhos sob o efeito de mais uma dose de sedativo. Mas dessa vez iria dormir em paz.

O rosto de Erika era realmente lindo, daqueles que não se sabe precisar a idade; podendo tanto pertencer a uma jovem, como a uma mulher mais madura. Na verdade, ela estava para completar dezesseis anos, mas a vida na vida acabou fazendo-a amadurecer precocemente. Parecia e se comportava como mulher feita. A recuperação foi bem mais rápida do que o esperado. Na quarta noite já tirou por conta própria os elétrodos grudados com gel no seu corpo e se pôs a caminhar pelos arredores segurando o soro. Logo encontrou a sala de descanso dos plantonistas e viu Dagmar e Rosa Maria sentadas, tendo uma pequena mesa entre elas, onde estava espalhado o baralho do pontinho. A primeira, sem perder tempo, se levantou decidida a levar Erika de volta para a cama. Mas a colega prontamente segurou seu braço e piscou o olho, enquanto perguntava para a paciente:

- Você quer sentar conosco?
- Posso?
- Claro, só que vamos colocá-la na cadeira de rodas e acomodar melhor este seu soro.
- Tá legal. Vocês estão jogando pontinho?
- Sim, você sabe como é?
- Sei sim. Eu, minha mãe e minha tia sempre jogávamos quando estávamos juntas. Apostávamos grãos de feijão.

Dagmar, acabando de ajeitar Erika na cadeira de rodas, ainda teve tempo de comentar, enquanto juntava o baralho:

- Aqui o jogo é sério. Vale palitos de fósforo

Com o intervalo de alguns cuidados especiais que deviam ser dispensados aos pacientes, a noitada se prolongou até o nascer do dia. O expediente encerrava às 7 horas. Uns vinte minutos antes, ajeitaram tudo, o que incluiu devolver Erika para o seu leito. O encontro entre as três passou a se repetir em todos os plantões, mesmo depois de a paciente ter saído da UTI para o quarto e depois para o alojamento das mães com crianças hospitalizadas.

Em paralelo ao festival de carteado, Érika finalmente pôde conhecer a filha. Ela era ruiva como Angélica. Sem dúvida, a menina tinha puxado a família paterna. Isto fez Erika desistir da idéia inicial de homenagear a mãe. Foi registrada como Aparecida, logo apelidada de Cidinha pelas amigas enfermeiras.

Perto de tudo que tinha acontecido nos últimos anos, a vida no hospital sempre foi lembrada com grande carinho e até prazer. Mas Erika sabia que aquelas férias iriam acabar. Precisava imaginar um jeito de ganhar a vida. As duas cicatrizes das cirurgias de emergência estavam com aspecto chocante e isso não era nada bom para atrair clientes. O jeito seria tentar conseguir outra vaga de costureira no Bom Retiro. Ela gostava do trabalho em si, mas tinha medo de novas confusões, além do salário ser muito baixo para sustentar a ela e Cidinha. Mas a sorte estava virando a seu favor.

No mesmo dia em que soube da provável alta da filha naquela mesma semana, recebeu duas visitas. A primeira foi de um sujeito bigodudo e mal cheiroso que se dizia seu advogado. Falou no processo que os dois poderiam mover contra a loja de Jacozinho. Bastava ela lhe passar seus documentos e assinar uma procuração que já estava pronta e estaria tudo praticamente resolvido. Em algumas semanas eles teriam o dinheiro na mão. Erika, então, lembrou de uma das lições mais insistentes de Elise: nunca assinar qualquer coisa sem entender perfeitamente o que está escrito no documento. Assim, não dizendo uma palavra, começou a ler o texto, que dava plenos poderes ao advogado, além de conter incompreensíveis regras sobre honorários.

- Olha Doutor, vou pedir para minhas amigas darem uma olhada nesse papel. Podemos conversar amanhã?

O advogado, ao ouvir aquela resposta, transformou seu semblante, passando a fazer diversas ameaças caso ela não assinasse, o que incluía o confisco da filha. Erika, mesmo assustada, aprendeu na vida que de nada vale se manter acuada e armou seu próprio barraco, chamando a atenção de todos que estavam nas proximidades da recepção do hospital. Foi uma feliz coincidência o fato de naquele exato momento Dagmar e Rosa Maria estarem chegando juntas para o plantão da noite. De pronto elas posicionaram ao lado da paciente, o que acabou provocando a rápida retirada do advogado, não sem antes recuperar violentamente o documento e sumir porta afora.

Acalmando-se com a rodada noturna de pontinho, o carteado teve como tema central a história de Erika, mas sem os relatos mais picantes da vida de prostituição. Isto acabou sendo contado aos poucos, nos anos que se seguiram. Estava nascendo uma sólida amizade entre as três, que se propagaria futuramente no mundo dos negócios.

Coincidência ou não, no dia seguinte outra cena fora do comum: Erika estava saindo do refeitório do hospital, quando passando novamente pela recepção se deparou com Jacozinho e Suen, cercados de quatro crianças. Ao vê-la, os dois se ajoelharam e começaram a chorar, ao mesmo tempo em que proferiam palavras incompreensíveis. Aquela imagem chocante foi quebrada pela intervenção de uma senhora, também de traços orientais, trajando elegante tailleur.

- Senhora, a sua frente está uma família que lhe pede perdão. Meu povo é recém-chegado a esta terra e queremos prosperar em paz. Para provar isso vim aqui pronta para lhe compensar por todos os transtornos que o Sr. Haiata ( verdadeiro nome de Jacozinho) e sua esposa lhe causaram. Dentro desta bolsa que lhe presenteamos está uma amostra da nossa generosidade, em troca do seu perdão.

Erika abriu o presente e verificou que o conteúdo tratava-se de vários e generosos maços de dinheiro. Em princípio ficou impressionada e mal conteve a alegria. Mas logo lembrou de que já estava há dois meses sem sair da maternidade e, conforme o costume, o valor daquela as notas diminuía rapidamente. Assim, ela não sabia precisar se todo aquele papel valia muito ou pouco. Era a tal da inflação. O bom senso a mandava aceitar o mimo e tentar conseguir alguma coisa mais, já que na situação de menor de idade, as coisas poderiam se complicar para ela e a filha. Assim, usando todo o português educado que Tia Beti lhe ensinara, tomou a palavra:

- Apesar de eu e minha filha, que talvez seja também de Jacozinho, quase termos morrido por causa da surra de Dona Suen, sempre fui ensinada a perdoar. Mas minha saúde acabou ficando prejudicado (dizendo isto mostrou por baixo da blusa uma das cicatrizes cirúrgicas ) e preciso de condições para um novo começo.

- Seja mais clara. Estamos dispostos a ajudá-la na medida do razoável.

- Ontem veio aqui um advogado dizendo que, com os serviços dele, eu poderia ser a futura dona da loja. Não gostaria de que isto acontecesse. Mas agora sou mãe de família e não posso pensar só em mim. Agradeço o presente, mas acho que o meu perdão vale muito mais do que isso.

- Diga logo a sua proposta; não estou aqui para perder tempo.

- Está bem, quero uma máquina de costura nova, outra de overloque, mais três anos gratuitos naquele sobrado que está para alugar na Rua dos Italianos.

- Você está exagerando. Saiba que temos outros meios não tão simpáticos para lhe convencer a não nos importunar.

- Então está certo. Pegue seu presente de volta e hoje à tarde meu advogado irá na José Paulino conversar com vocês.

Ao ouvir esta resposta; fruto da mistura de sabedoria e malandragem adquirida ao longo dos últimos anos, a porta-voz da família novamente se dirigiu a Erika com um tom mais respeitoso, e pediu licença para conferenciar com Jacozinho e Dona Suen.

A cena que se seguiu foi até engraçada. O casal, que permanecia de joelhos, em posição de humildade, se levantou e os três começaram a discutir aos gritos, sendo que de vez em quando o marido ainda levava doloridos cascudos na cabeça, ministrados pela furiosa esposa.

- Insistimos para que a Senhora aceite o nosso presente. Quanto ao nosso acordo, garanto que tudo estará providenciado até a próxima segunda-feira. É uma imensa alegria poder contar com o seu perdão, honrada dama. Esqueça seu advogado e não atenda a ninguém que se diga fiscal do trabalho. A família lhe é grata do fundo da alma.

Erika não pôde conter seu sorriso maroto. Ao ouvir aquelas palavras que lhe resolviam a vida, assistia divertida a demonstração de gratidão do fundo da alma da família de Jacozinho e Suen. A imagem que ficou para sempre gravada na sua mente era composta do marido e a esposa trocando eventuais tapas no rosto em idioma incompreensível, enquanto as duas crianças mais novas choravam e a menina mais velha não parava de chutar as canelas do pai.

Quando eles foram embora do hospital, pouco depois, todos os que ficaram se deliciaram com o silêncio que retornava.

domingo, 15 de julho de 2007

Capítulo 4 - Érika

Capítulo 4 – Érika

A placa da carreta era de Campo Grande. Assim, quando resolveu acompanhar João Carlos, Érika imaginou que com o caminhão vazio como estava, em um dia, no máximo dois, conseguiria finalmente estar no aconchego da tia bondosa. E a pressa de conseguir um lar aumentava. Os enjôos dos últimos dias não tinham relação alguma com a repulsa à vida na estrada. Não havia mais dúvida, era nenê que estava para chegar. Lembrou, então, das várias vezes que a mãe havia lhe contado a história do seu nascimento. Numa festa junina Elise, ainda menor de idade, havia dançado com quase todos os rapazes conhecidos. Mas nenhum era verdadeiramente do seu agrado, apesar de todos os pedidos de namoro. Quando a festança estava mais para o final, ela reparou num homem jovem, desconhecido e que não lhe tirava olho. Sem saber porque, liberou o sorriso que realçava sua bela e carnuda boca. Logo depois de um copo de quentão, estavam dançando aos beijos. Esta era a última coisa que Elise se lembrava até acordar do lado da rodovia, com os joelhos e braços esfolados e o vestido todo rasgado. Na madrugada, ao chegar em casa, foi imediatamente socorrida pela irmã mais velha. O pai olhando para o aspecto da filha não esperou para adverti-la de que, caso tivesse pego barriga sem honra, ela estaria no olho da rua.


O caso acabou virando um dos assuntos favoritos da cidade, sendo que a cada dia aumentava o número dos que declaravam nas mesas de bar ter participado do "batizado" de Elise. Com o tempo a história foi sendo esquecida, e somente Luis, sujeito metido malandro, mas sempre quebrado, levantava novamente a lebre, relembrando e se gabando do evento no qual nunca esteve, na verdade. Isso foi o suficiente para que anos mais tarde o juiz de menores tivesse lhe atribuído a paternidade de Erika, após o falecimento da e.


Com a gravidez confirmada Elise foi expulsa da casa paterna, levando consigo apenas a roupa do corpo. Apesar de muito jovem ela tinha a consciência de que uma nova vida estava para chegar. Era necessário encontrar algum lugar para morar e conseguir um meio de vida. Graças à irmã foi possível arranjar emprego na mercearia do bairro rico, com parte do salário sendo descontado para pagar o aluguel do quarto dos fundos do prédio. E nasceu Erika. Passados alguns anos a mãe era gerente do estabelecimento e conseguira economizar o suficiente para comprar um terreno e iniciar a construção da sua a própria casa. O dinheiro que faltou foi financiado por um dos programas de habitação do governo federal. A partir daí a vida da mãe e da filha foi realmente feliz, sem contar a alegria das duas visitas anuais de tia Beti, que morava em Campo Grande.

De uma certa forma, repetindo a história da mãe, Erika olhou para a própria barriga e espontaneamente falou:

- Nós também vamos ser muito felizes. E eu prometo que não vou morrer.

João Carlos pensou que aquelas palavras fossem dirigidas a ele. Casado e pai de três filhos, afora uma produção fora de casa que havia causado a maior encrenca, não queria mais confusão na sua vida. Assim, depois de ter cobrado os serviços da garota na noite passada em Dourados, usou o argumento de uma carta de frete para São Paulo e foi a deixando lá mesmo.

São Paulo, a cidade grande, terra das oportunidades que todos falavam. O encontro com Tia Beti podia ficar para o futuro. Sem perder tempo, Érika usou sua arma secreta: um carinho especial aprendido com uma colega de babado. Colocando o caminhoneiro fora de si, foi dizendo:

- São Paulo, é? Aposto que vou gostar de lá. Vou com você, ?

Completamente rendido, o pobre do pai de família que pretendia levar uma vida mais comedida depois da última aventura fora de casa, não teve como não adiar por mais algum tempo os seus planos. Abriu a porta de seu velho Mercedes 1313 vermelho, embarcou a moça e ainda teve a sorte de carregar a caçamba com milho para a capital paulista. Foi meio estranho que o carregamento tenha demorado demais para ser feito, com algumas sacas sendo acondicionadas com todo cuidado no início da pilha. Passadas algumas horas, a dupla novamente ganhou a estrada. Mesmo podendo chegar ao objetivo no final do dia seguinte, João Carlos não resistiu em aproveitar a situação ao máximo. Afinal de contas, estando no inferno o melhor é abraçar o diabo, pensava ele. A rota acabou sendo feita no triplo do tempo previsto.

Finalmente, após quase uma semana de pouca estrada e muita parada, eles estacionaram dentro do depósito no Brás, conforme orientava a documentação. Ao desligar o motor do caminhão os portões do prédio estavam quase totalmente fechados. João Carlos e Erika repentinamente se viram cercados por uns oito homens, três dos quais apontavam armas na direção deles. Seguindo o mando do gordão, desceram do veículo e esperaram, sem reação, pela sorte. De início apenas foram colocados em duas cadeiras de plástico no canto do depósito com ordem de permanecerem quietos. Ficaram assim, ainda vigiados por um sujeito armado, enquanto os outros se apressavam descarregar a caçamba e o gorducho dava ordens para separar algumas sacas. Com um canivete abriu uma delas para verificar o conteúdo: algo que parecia tijolos verdes, como se fosse erva prensada. Diante daquele quadro, Erika não conseguia encontrar senso, ainda mais que João Carlos ao ver a saca aberta ficou visivelmente apavorado.

Com a carga toda descarregada os bandidos pareciam ter ficado mais tranqüilos. Mas isto não evitou que puxassem o motorista para um canto e lhe aplicassem uma severa surra. Enquanto isso acontecia, o sujeito de corpo avantajado pegou Érika pelos cabelos e, ao saber que não era a mulher nem filha do transportador, a arrastou para a pequena porta de saída do depósito, lhe lembrando várias vezes que ela nada tinha visto. Qualquer suspeita de delação e a moça apareceria boiando junto com o lixo do Tietê.

Não entendendo nada daquilo, o importante é que finalmente estava na rua. Caminhou apenas algumas quadras e se tranqüilizou ao encontrar uma grande feira ao ar livre, que não tinha nem comparação com aquela que uma vez por semana acontecia na sua cidade. Seguiu andando no meio daquele mar de gente e sorriu ao imaginar como Aparecido reagiria a tudo aquilo. Um dia teria que reencontrá-lo, pois o seu futuro filho ou filha haveria de ter um pai verdadeiro.

Com o dinheiro que tinha guardado procurou uma pensão, disposta alugar algum cômodo por pelo menos duas semanas. Mas os preços de São Paulo eram bem maiores. Além do mais, a cada dia as notas podiam comprar menos coisas e novas cédulas eram lançadas com valores cada vez maiores. Érika sabia que dinheiro no bolso era dinheiro jogado fora. O negócio era gastar o quanto antes. Na casa com os piores quartos conseguiu pagar antecipado quatro dias de estada, sobrando mais algum para comprar comida e um vestido novo na feira. O trabalho na rua não tinha como durar muitas semanas. Logo sua barriga iria crescer, o que espantava os clientes. Certa disso, a futura mãe trabalhava o tanto quanto podia à noite e durante o dia andava pela cidade na busca de alguma oportunidade.

E foi assim, depois de uns vinte dias vivendo na cidade grande, que passeando pela rua José Paulino, no Bom Retiro, encontrou, defronte a uma loja, o papel do outro lado da vitrine que dizia "Aceitamos costureiras com pouca prática; oferecemos acomodação". De uma certa forma, era reiniciar a vida da sua própria mãe. Naquele mesmo dia se mudou, sendo aceita no emprego graças ao conhecimento de costura aprendido nas visitas de Tia Beti e uma leve ajuda da sua arma secreta, aplicada no coreano que todos chamavam de Jacozinho...

sexta-feira, 6 de julho de 2007

Capítulo 3 - Aparecido em Miami

Capítulo 3 – Aparecido em Miami

Era o maior alvoroço na enfermaria. As poucas macas estavam lotadas e os exaustos doentes mais sortudos conseguiram se acomodar no sofá e nas poltronas da sala de descanso dos enfermeiros. O resto não tinha saída, senão ficarem prostrados no chão mesmo. Pelo jeito, o bandido da salmonela havia atacado novamente. Ninguém tinha pistas de quem era ele. Mas já há algum tempo alguém estava contaminando não se sabe como os alimentos das lanchonetes preferidas dos funcionários do aeroporto. No início, pensaram em acidente; na primeira repetição atribuíram o fato à coincidência; mas três dias depois, outro foco em restaurante distante das lanchonetes, deu a certeza de que existia mesmo alguém planejamento e executando ataques à saúde dos freqüentadores do aeroporto de Guarulhos. Em meio a tudo, chega Aparecido, sendo carregado por uma padiola, ainda desacordado.

A comissária de bordo, com seu jeito pouco cortês a ponto de já ter sido alvo de reclamações de alguns clientes da companhia aérea, foi logo ao encontro da jovem que usava jaleco branco, com um estetoscópio parcialmente saindo do bolso da frente:

- Você é a plantonista deste lugar? Estou deixando este passageiro. Faça um bom trabalho

- Espere um pouco, disse Dra. Dolores, segurando a comissária pelo ombro. Preciso fazer algumas perguntas antes de dar a entrada do paciente na enfermaria.

- Então faça logo essas perguntas, que eu tenho que voltar correndo para a aeronave. Essa bagunça dos controladores de vôo atrasou meu dia em quase 8 horas.

- Pelo que eu sei eles só estão sendo responsáveis, para evitar a possibilidade de novos acidentes, como aquele de outubro. Mas isso não é o importante agora. Por favor, meos dados do passageiro e conte o que aconteceu com ele, que aparenta estar em estado de choque.

- Sei o que aconteceu com esse cara. Na hora que todo mundo desembarcou ele ficou parado na poltrona. Para meu azar, estava perto dele e o chacoalhei para acordar. Ao invés disso, ele se caiu para cima de mim. Daí o chefe de cabine mandou trazer a maca e sobrou para mim acompanhá-lo até aqui. Verifiquei, e tem um RG mais para do que pra no bolso da calça. Mais alguma pergunta, ou posso ir embora?

- Nada disso, em primeiro lugar, você ou outro representante da companhia aérea deverá se comunicar com os familiares do Senhor Aparecido (olhando para a identidade).

- Não tenho tempo para isso. Daqui a pouco ele acorda e acabou o problema.

- Sinto dizer, mas talvez o paciente não recupere consciência tão facilmente. Por algum motivo, o estado de choque dele parece ser muito profundo. Se você tiver mesmo de embarcar agora, poderá fazê-lo se alguém da sua empresa vier substituí-la aqui.

- Então tá, liga para esse número e diz que eu mandei alguém vir para . Tchau.

- Queridinha, eu estudei seis anos, fiz mais dois de residência e tenho 3000 horas de cursos de especialização. É claro que não ralei tanto para ser menina de recados deu uma aerovelha, digo aeromoça qualquer.

O bate-boca continuou e não foram poucas as vezes que os internos menos debilitados pela salmonela tiveram de apartar tentativas de arranhões e puxões de cabelo. Para sorte das duas, num dos breves momentos sem berros e agressões, chegou o comandante da aeronave para pessoalmente saber das providências que foram tomadas com seu passageiro. Ao identificar o perfil de Leonel por cima do biombo da sala de atendimento médico, Maria Cândida instantaneamente trocou o olhar de fogo por um rosto de inacreditável serenidade.

- Léo, estou aqui atrás. Eu ia voltar para o avião, mas antes preciso ligar a alguém da empresa para ficar aqui, pois estou preocupada com o estado de saúde deste senhor, ainda desacordado. E você, conseguiu descansar um pouquinho?

Enquanto falava a Comissária usava o telefone para chamar alguém da companhia aérea, que não demorou mais de dois minutos para chegar. Ao sair com as costas da mão encostadas no lado de Leonel, fechou lentamente a porta da enfermaria, quando soou uma enorme vaia. O piloto curioso, perguntou o motivo de tal comportamento, e ela prontamente respondeu de forma muito doce.

- Acho que foi porque eu não pude ficar mais tempo com o coitadinho dos doentes. A médica de plantão parecia muito perturbada, sem nenhum controle emocional. Então, enquanto eu esperava alguém da empresa, não resisti e comecei administrar compressas nos mais febris. Você sabe como eu sou, Léo?

Leonel agora tinha certeza: Maria Cândida era a mulher perfeita para colocar um ponto final na sua viuvez de cinco anos, quando a esposa teve complicações de parto. Finalmente poderia resgatar a filha dos rigores da avó materna, pois com o casamento a nova esposa deixaria de voar. E com estes planos na cabeça atravessou o finger e, sorridente, sentou na cabine de comando para fazer o próximo trecho.

Na enfermaria, o desacordado Aparecido estava em envolto em crescente mistério. Pelos dados do passageiro foi possível encontrar seu telefone residencial de Brasília. Ao ser comunicada do estado de choque do marido, Cícera deu outras informações.

- Faz menos de uma hora que deixei Aparecido no hospital, aqui na Asa Sul e voltei para casa para pegar a carteira do plano de saúde dele.

Sem saber o que fazer, o despachante da companhia aérea apenas desligou telefone. Passados uns dois minutos ele conclui ser melhor checar os dados do passageiro. A identidade, que agora estava em seu poder, tinha uma pequena diferença do bilhete de passagem emitido, que o sobrenome do documento era Ferreiro e no ticket estava registrado Ferreira. Mesmo sendo um erro muito comum, ainda seria prudente confirmar o número do RG. A conclusão foi óbvia: quem embarcou foi outra pessoa. Comentando em primeiro lugar a descoberta com Dra. Dolores, que estava fazendo uma pausa para aliviar a indignação diante da cenas que participara e assistira alguns minutos. A médica ficou curiosa e foi observar paciente mais uma vez. Mas ao voltar à sala da enfermaria, se deparou com a maca onde deveria estar Aparecido, completamente vazia. Ele havia escapado.

Aparecido, caminhando pelo Aeroporto Internacional de Guarulhos verificou que o local era uma mina de ouro em termos de latas de alumínio abandonadas em bares. Naturalmente, tirou do bolso interno do paletó o saco plástico cuidadosamente dobrado e começou a coleta. Sobre o seu apagão pessoal, tinha consciência de que algo diferente havia ocorrido, mas preferia se manter fiel ao lema da sua existência: seguir em frente toda a vida. Em menos de dez minutos seu recipiente estava lotado. Assim, foi na direção do que achava ser a saída. O próximo passo seria encontrar sua fiel carroça. Cidão até estranhou que aquele local tinha portas que se abriam e fechavam sozinha, o que não costumava existir no aeroporto de Brasília. Chegando na rua verificou que era noite alta e chovia torrencialmente. O melhor era esperar raiar o dia mesmo e depois seguir o caminho que deveria ser seguido.

De volta ao terminal de desembarque, subiu ao piso superior na esperança de encontrar algum local sossegado e seguro para dormir. O que pareceria estranho naquele momento, havia se tornado algo completamente comum, pois chegavam aos milhares o número de exaustos viajantes com seus vôos atrasados mais de 3 horas e sem perspectivas para embarque nos próximos minutos. O local escolhido, então, foi nas proximidades de uma farmácia no terceiro piso.Aparecido se acomodou e dormiu profundamente por algumas horas.

Despertou quando ainda estava escuro, com alguém berrando algo como:

- Irmãos, sigam-me, venham comigo seguir Bispo Ernani, na direção do eleito; Ele em breve vai ressuscitar e nos conduzir ao paraíso. Nós sabemos o caminho que conduz a Ele e temos a missão de conduzir os fiéis. E salve a Igreja Ressuscitar do Divino. Venha a mim, a sua Bispa Xuxa, todos os fiéis dispostos a seguir o caminho e ir em frente.

Aparecido ficou sensibilizado com aquelas palavras por três motivos. Em primeiro lugar sempre se considerou uma pessoa fiel, e ai de quem duvidasse disso. As palavras ditas, sobre seguir em frente, era tudo o que ele pensava. E finalmente, Xuxa era o nome da sua irmã mais velha, que há muitos anos não via. Talvez fosse ela. Assim, chegou vagarosamente no pequeno grupo de pessoas ao redor da Bispa, que quando reparou na sua presença, disse naturalmente:

- Aproxime-se, meu irmão.

A emoção foi forte demais; depois de muitos anos reencontrara pelo mundo a irmã mais velha. Chorando, Cidão ajoelhou-se e abraçou as pernas de Xuxa, aconchegando seu rosto no ventre da religiosa. Ela, por sua vez, posicionou suas mãos acima das orelhas de Aparecido, que, em meio ao pranto, perguntava sobre a mãe e as irmãs Mara e Eliana.

- Estão todas em paz com o criador, agora levanta meu irmão, que é hora de seguirmos o caminho.

Por sorte, Aparecido se colocou em instantes antes de levar uns sopapos do ciumento bispo Ernani, que se conteve ao ver a esposa desvencilhada daquele abusado, ou maluco.

Além do mais, seguir o caminho era com ele mesmo. Então não pensou duas ou uma vez para se juntar aos Bispos e outros três seguidores, cada qual com um jeito mais estranho. Após rápida refeição numa lanchonete, ao lado daquela com contaminação de salmonela, Xuxa pediu os documentos de todos para encaminhar a viagem. Todos eles apresentaram uma caderneta verde cheia de folhas, mas Cidão compareceu com seu velho RG. Perguntado a respeito do passaporte, logo ficou claro para os religiosos que ele nem imaginava do que se falava. Sem problema, depois de algumas horas, Aparecido era presenteado com aquela caderneta bonita, e dentro tinha um monte de carimbos estranhos, muitos dos quais eram desenhados ao invés de terem letras. E o mais importante: sua foto do RG estava lá toda orgulhosa no início da caderneta. Uma troca para melhor, pensou ele. Angélica, toda cheia de palavras, iria ficar com inveja. Nesse pensamento, sentiu falta da irmã caçula. Mas tudo bem, agora estava ao lado da primogênita e ela também falava em seguir em frente.

Foi interrompido em tais reflexões com a ordem de Bispo Ernani de se levantar para seguirem o caminho. Obedecendo, seguiu atrás do grupo até uma sala cheia de barraquinhas parecidas com as das quermesses, só que menores, onde todos apresentavam a caderneta. Ele fez o mesmo e passou rapidamente para outro corredor longo, no decorrer do qual muita gente estava sentada pacientemente. Ao fundo, havia uma pequena fila que começava a se mover e para lá foram. Pouco depois Cidão novamente estava sentado em uma daquelas poltronas que pareciam de dentista. Antes da nave começar a se mover, Xuxa entregou a cada fiel um livro de orações. Não era para abri-lo, segundo as instruções da irmã; apenas segurá-lo firmemente até o destino final, o que garantiria a boa sorte na jornada. Abrir era proibido, repetiu algumas vezes para ser bem clara.

Aparecido sentiu o tranco do trator iniciando o deslocamento do avião rumo à pista de decolagem. Ficou apreensivo, tendo alguns flashes de memória da viagem de Brasília à São Paulo. Mas ainda era noite (e chuvosa) fazendo com que a decolagem não o impressionasse tanto. Ainda mais, estava junto da irmã mais velha que o protegeria e conduziria seu caminho adiante. Então, o estado de choque foi trocado pela fantástica paisagem da floresta amazônica vista do alto ao amanhecer. A comida boa deixou tudo ainda melhor. Mais algumas horas e o jato aterrissou.

Bispo Ernani assumiu a liderança do grupo. Caminharam todos juntos na direção de outras barraquinhas de quermesse (na visão de Aparecido). Cada um dos seguidores foi posicionado em fila diferente, mas Cidão foi o primeiro a ser encaminhado. Vantagem concedida pela irmã, pensou ele. Fazendo como todos, tirou sua caderneta verde pronto para mostrá-la ao senhor com uniforme, como ocorreu horas antes. Mas dessa vez tudo acabou sendo diferente. O oficial de alfândega norte-americano – afinal eles estavam em Miami – ao olhar o passaporte de Aparecido reparou imediatamente na grosseira falsificação. Prontamente acionou a polícia de imigração, centralizando a atenção de todos.Os demais guichês continuaram a funcionar e no estabelecimento da confusão, todos os demais membros da Igreja Ressuscitar do Divino, tiveram seus vistos de entrada carimbados sem despertar maiores atenções. Enquanto isso, três homens fardados imobilizavam Cidão, que se recusava a deixar quem quer que seja olhar e abrir o livro de orações, obedecendo assim às ordens da irmã. Mas ele não era páreo para os atléticos guardas e logo foi desvencilhado da publicação. Ao ser aberta, ao invés de páginas, um pacote muito bem embalado. Seu conteúdo: notas e mais notas de um dinheiro verde, que Aparecido nunca havia visto. Neste exato instante, ele viu a irmã e o resto da comitiva saindo apressadamente daquela grande sala. O berro que deu para chamar Xuxa causou alarde, quase pânico. Imediatamente foi novamente imobilizado, mas desta vez com a ajuda de algemas.

Seu destino: o xadrez do aeroporto de Miami. Na carceragem, pelo menos, conseguia entender as palavras faladas por quem lá estava. Cada qual contava a sua história e alguns se vangloriavam do maior número de detenções pela imigração. Mas Aparecido não gostava de conversa e estava triste. Acostumado à imensidão das rodovias, ele agora estava preso a uma cela sem janelas; impossível ver a luz do sol.Meio sem sentir, sentou no chão, num canto, e passou a cantar as músicas que conheceu pela vida afora. Todos silenciaram para apreciar aquela voz triste, mas serena e de uma afinação impecável. Em um certo momento do show involuntário, Aparecido começou e interpretar a música “É o Amor”, de Zezé de Camargo. A surpresa ficou por conta do acompanhamento de um guarda da carceragem conhecido como Tobby The Little Dog, apelido ganho em função da sua baixa estatura e corpo muito peludo, além do hábito incomum de mostrar suas emoções por meio de latidos e outras expressões caninas. No momento em que Cidão entoava o refrão da canção (é o amor, que mexe comigo...), tobby soltava seu profundo uivo de acompanhamento. Por incrível que possa parecer, existia harmonia entre os dois.