sábado, 28 de julho de 2007

Capítulo 5 - Apareceu Aparecida

Apareceu Aparecida

O salário não era lá essas coisas. E ainda mais com o desconto do minúsculo quarto sem janela e das refeições que era obrigada a fazer no próprio serviço, o que sobrava mal dava para a alimentação nos domingos, quando a loja e a facção ficavam fechadas. A solução para guardar algum dinheiro foi se contentar com apenas uma refeição no dia de folga. Assim mesmo, a gravidez de Erika chegara naquela fase em que a barriga crescia rapidamente. E isto, para ela, deveria ser escondido o tanto quanto possível. Não por causa dos programas, já que o expediente das 8h da manhã às 10h da noite a deixava sem energias para qualquer tipo de espichada. Seus motivos para ocultar a gravidez estava no temor de que isto fosse motivo para demiti-la como aconteceu com algumas amigas lá na sua cidade natal. Quando fosse descoberta até tinha um plano, do qual se ria sozinha ao lembrar dele: a idéia era jogar a culpa em Jacozinho, viciado em bolinar ela e as outras garotas da costura sempre que Dona Suen, sua esposa que não falava português, saia rua afora.

Enquanto dava para disfarçar, Erika aproveitava restos de tecidos, linhas, botões e elásticos para ir ajeitando as próprias roupas de forma a esconder sua condição. Nesse exercício quase que diário, ela foi rapidamente se aperfeiçoando em imaginar e moldar modelos de vestidos, camisas e calças próprios para o seu corpo em constante e transformação. Ela estava se revelando uma verdadeira artista e sua gravidez só foi revelada porque Jacozinho, lá pelo sétimo mês, resolveu utilizar sua mão boba por baixo dos panos cuidadosamente distribuídos. Tamanho foi o susto ao sentir a protuberância que ao retirar o braço acabou abrindo o camisão da moça, deixando-a nua da cintura para cima. Lembrando rapidamente do plano traçado, ela se levantou sem tapar o corpo e falou:

- Viu o que aconteceu? O filho é seu.

O coreano perdeu completamente o controle e não conseguia mais falar qualquer palavra em português. Na sua própria língua berrava algumas coisas ao mesmo tempo em que chorava e batia com as duas mãos na própria testa. Após alguns minutos daquela cena, Suen chegou correndo e depois de gritar coisas incompreensível e cortar o rosto de Jacozinho com suas enormes unhas, avançou em Erika, pegando-a pelo longo rabo-de-cavalo e atirou-a para fora da loja com tanta violência que ela rolou em pleno chão da José Paulino, perdendo os sentidos, tamanha foi a dor. Lógico, o burburinho na frente do estabelecimento atraiu a atenção de todos os vizinhos e transeuntes. Mais alguns instantes e lá estava a polícia tentando dispersar a multidão revoltada com o brutal tratamento a uma grávida. Enquanto Érika, ainda desacordada, era colocada na ambulância, um fiscal do trabalho que casualmente passava por lá foi verificar o registro de empregados, enquanto os guardas preparavam a prisão em flagrante.

Ao abrir os olhos, Erika se viu em um ambiente completamente estranho. Estava deitada em cima de uma engenhoca cheia de tubos e fios, alguns dos quais estavam colados ao seu corpo ou muito próximos dele, como aquele que soprava um vento gostoso direto na sua boca e nariz. Na volta tinha outras camas parecidas tomando espaço daquele quarto com pouca luminosidade, mas todo branco. Tentando se localizar, levou a mão à barriga para fazer sua costumeira brincadeira de sentir os pontapés do nenê. Mas apesar de inchada, sentiu na hora que o seu interior estava vazio. O grito desesperador chamou a atenção de todos daquele local que não estavam sedados ou em coma. Diante do alarme, Dagmar e Rosa Maria deixaram de lado a partida de pontinho e foram correndo ver o que se passava. Habituadas a aquele tipo de manifestação, ao ver que não conseguiriam controlar o surto de Erika, amarraram suas pernas e braços nas barras do leito e administraram, via soro, um sedativo o qual agiu rapidamente.

Passadas mais algumas horas, novamente acordou, mas estava demasiadamente grogue para demonstrar todo o desespero. Apenas conseguia gemer e choramingar baixinho. Naquele ambiente isto foi o suficiente para ser ouvida. Dagmar, com grande calma e ternura, pegou sua mão e falou pausadamente.

- Você está em uma maternidade para grávidas de risco. Fomos obrigados a fazer uma cirurgia de emergência, pois você tinha uma hemorragia que, se não fosse contida, iria lhe deixar em situação muito difícil. Erika, me ouça: para ficar boa é necessário que você fique em repouso e não se mexa. Afinal de contas, estamos cuidando de uma linda menininha que vai precisar de uma mamãe bem forte e saudável.

Ao ouvir as palavras finais, Erika, mesmo sem poder falar, conseguiu sorrir e suas lágrimas passaram a ser de emoção e não mais de desespero. Dagmar ainda complementou:

- sua filha nasceu aproximadamente seis semanas antes de completar o nono mês. Por este motivo ela está em observação em nossa CTI para prematuros. Se você se comportar terá forças para vê-la dentro de uma semana. Por ora o melhor é dormir. Quando pudermos diminuir seus remédios, vamos te ensinar a tirar leite para alimentar a menina.

Ao mesmo tempo em que ouvia isto, Erika novamente começava fechar os olhos sob o efeito de mais uma dose de sedativo. Mas dessa vez iria dormir em paz.

O rosto de Erika era realmente lindo, daqueles que não se sabe precisar a idade; podendo tanto pertencer a uma jovem, como a uma mulher mais madura. Na verdade, ela estava para completar dezesseis anos, mas a vida na vida acabou fazendo-a amadurecer precocemente. Parecia e se comportava como mulher feita. A recuperação foi bem mais rápida do que o esperado. Na quarta noite já tirou por conta própria os elétrodos grudados com gel no seu corpo e se pôs a caminhar pelos arredores segurando o soro. Logo encontrou a sala de descanso dos plantonistas e viu Dagmar e Rosa Maria sentadas, tendo uma pequena mesa entre elas, onde estava espalhado o baralho do pontinho. A primeira, sem perder tempo, se levantou decidida a levar Erika de volta para a cama. Mas a colega prontamente segurou seu braço e piscou o olho, enquanto perguntava para a paciente:

- Você quer sentar conosco?
- Posso?
- Claro, só que vamos colocá-la na cadeira de rodas e acomodar melhor este seu soro.
- Tá legal. Vocês estão jogando pontinho?
- Sim, você sabe como é?
- Sei sim. Eu, minha mãe e minha tia sempre jogávamos quando estávamos juntas. Apostávamos grãos de feijão.

Dagmar, acabando de ajeitar Erika na cadeira de rodas, ainda teve tempo de comentar, enquanto juntava o baralho:

- Aqui o jogo é sério. Vale palitos de fósforo

Com o intervalo de alguns cuidados especiais que deviam ser dispensados aos pacientes, a noitada se prolongou até o nascer do dia. O expediente encerrava às 7 horas. Uns vinte minutos antes, ajeitaram tudo, o que incluiu devolver Erika para o seu leito. O encontro entre as três passou a se repetir em todos os plantões, mesmo depois de a paciente ter saído da UTI para o quarto e depois para o alojamento das mães com crianças hospitalizadas.

Em paralelo ao festival de carteado, Érika finalmente pôde conhecer a filha. Ela era ruiva como Angélica. Sem dúvida, a menina tinha puxado a família paterna. Isto fez Erika desistir da idéia inicial de homenagear a mãe. Foi registrada como Aparecida, logo apelidada de Cidinha pelas amigas enfermeiras.

Perto de tudo que tinha acontecido nos últimos anos, a vida no hospital sempre foi lembrada com grande carinho e até prazer. Mas Erika sabia que aquelas férias iriam acabar. Precisava imaginar um jeito de ganhar a vida. As duas cicatrizes das cirurgias de emergência estavam com aspecto chocante e isso não era nada bom para atrair clientes. O jeito seria tentar conseguir outra vaga de costureira no Bom Retiro. Ela gostava do trabalho em si, mas tinha medo de novas confusões, além do salário ser muito baixo para sustentar a ela e Cidinha. Mas a sorte estava virando a seu favor.

No mesmo dia em que soube da provável alta da filha naquela mesma semana, recebeu duas visitas. A primeira foi de um sujeito bigodudo e mal cheiroso que se dizia seu advogado. Falou no processo que os dois poderiam mover contra a loja de Jacozinho. Bastava ela lhe passar seus documentos e assinar uma procuração que já estava pronta e estaria tudo praticamente resolvido. Em algumas semanas eles teriam o dinheiro na mão. Erika, então, lembrou de uma das lições mais insistentes de Elise: nunca assinar qualquer coisa sem entender perfeitamente o que está escrito no documento. Assim, não dizendo uma palavra, começou a ler o texto, que dava plenos poderes ao advogado, além de conter incompreensíveis regras sobre honorários.

- Olha Doutor, vou pedir para minhas amigas darem uma olhada nesse papel. Podemos conversar amanhã?

O advogado, ao ouvir aquela resposta, transformou seu semblante, passando a fazer diversas ameaças caso ela não assinasse, o que incluía o confisco da filha. Erika, mesmo assustada, aprendeu na vida que de nada vale se manter acuada e armou seu próprio barraco, chamando a atenção de todos que estavam nas proximidades da recepção do hospital. Foi uma feliz coincidência o fato de naquele exato momento Dagmar e Rosa Maria estarem chegando juntas para o plantão da noite. De pronto elas posicionaram ao lado da paciente, o que acabou provocando a rápida retirada do advogado, não sem antes recuperar violentamente o documento e sumir porta afora.

Acalmando-se com a rodada noturna de pontinho, o carteado teve como tema central a história de Erika, mas sem os relatos mais picantes da vida de prostituição. Isto acabou sendo contado aos poucos, nos anos que se seguiram. Estava nascendo uma sólida amizade entre as três, que se propagaria futuramente no mundo dos negócios.

Coincidência ou não, no dia seguinte outra cena fora do comum: Erika estava saindo do refeitório do hospital, quando passando novamente pela recepção se deparou com Jacozinho e Suen, cercados de quatro crianças. Ao vê-la, os dois se ajoelharam e começaram a chorar, ao mesmo tempo em que proferiam palavras incompreensíveis. Aquela imagem chocante foi quebrada pela intervenção de uma senhora, também de traços orientais, trajando elegante tailleur.

- Senhora, a sua frente está uma família que lhe pede perdão. Meu povo é recém-chegado a esta terra e queremos prosperar em paz. Para provar isso vim aqui pronta para lhe compensar por todos os transtornos que o Sr. Haiata ( verdadeiro nome de Jacozinho) e sua esposa lhe causaram. Dentro desta bolsa que lhe presenteamos está uma amostra da nossa generosidade, em troca do seu perdão.

Erika abriu o presente e verificou que o conteúdo tratava-se de vários e generosos maços de dinheiro. Em princípio ficou impressionada e mal conteve a alegria. Mas logo lembrou de que já estava há dois meses sem sair da maternidade e, conforme o costume, o valor daquela as notas diminuía rapidamente. Assim, ela não sabia precisar se todo aquele papel valia muito ou pouco. Era a tal da inflação. O bom senso a mandava aceitar o mimo e tentar conseguir alguma coisa mais, já que na situação de menor de idade, as coisas poderiam se complicar para ela e a filha. Assim, usando todo o português educado que Tia Beti lhe ensinara, tomou a palavra:

- Apesar de eu e minha filha, que talvez seja também de Jacozinho, quase termos morrido por causa da surra de Dona Suen, sempre fui ensinada a perdoar. Mas minha saúde acabou ficando prejudicado (dizendo isto mostrou por baixo da blusa uma das cicatrizes cirúrgicas ) e preciso de condições para um novo começo.

- Seja mais clara. Estamos dispostos a ajudá-la na medida do razoável.

- Ontem veio aqui um advogado dizendo que, com os serviços dele, eu poderia ser a futura dona da loja. Não gostaria de que isto acontecesse. Mas agora sou mãe de família e não posso pensar só em mim. Agradeço o presente, mas acho que o meu perdão vale muito mais do que isso.

- Diga logo a sua proposta; não estou aqui para perder tempo.

- Está bem, quero uma máquina de costura nova, outra de overloque, mais três anos gratuitos naquele sobrado que está para alugar na Rua dos Italianos.

- Você está exagerando. Saiba que temos outros meios não tão simpáticos para lhe convencer a não nos importunar.

- Então está certo. Pegue seu presente de volta e hoje à tarde meu advogado irá na José Paulino conversar com vocês.

Ao ouvir esta resposta; fruto da mistura de sabedoria e malandragem adquirida ao longo dos últimos anos, a porta-voz da família novamente se dirigiu a Erika com um tom mais respeitoso, e pediu licença para conferenciar com Jacozinho e Dona Suen.

A cena que se seguiu foi até engraçada. O casal, que permanecia de joelhos, em posição de humildade, se levantou e os três começaram a discutir aos gritos, sendo que de vez em quando o marido ainda levava doloridos cascudos na cabeça, ministrados pela furiosa esposa.

- Insistimos para que a Senhora aceite o nosso presente. Quanto ao nosso acordo, garanto que tudo estará providenciado até a próxima segunda-feira. É uma imensa alegria poder contar com o seu perdão, honrada dama. Esqueça seu advogado e não atenda a ninguém que se diga fiscal do trabalho. A família lhe é grata do fundo da alma.

Erika não pôde conter seu sorriso maroto. Ao ouvir aquelas palavras que lhe resolviam a vida, assistia divertida a demonstração de gratidão do fundo da alma da família de Jacozinho e Suen. A imagem que ficou para sempre gravada na sua mente era composta do marido e a esposa trocando eventuais tapas no rosto em idioma incompreensível, enquanto as duas crianças mais novas choravam e a menina mais velha não parava de chutar as canelas do pai.

Quando eles foram embora do hospital, pouco depois, todos os que ficaram se deliciaram com o silêncio que retornava.

domingo, 15 de julho de 2007

Capítulo 4 - Érika

Capítulo 4 – Érika

A placa da carreta era de Campo Grande. Assim, quando resolveu acompanhar João Carlos, Érika imaginou que com o caminhão vazio como estava, em um dia, no máximo dois, conseguiria finalmente estar no aconchego da tia bondosa. E a pressa de conseguir um lar aumentava. Os enjôos dos últimos dias não tinham relação alguma com a repulsa à vida na estrada. Não havia mais dúvida, era nenê que estava para chegar. Lembrou, então, das várias vezes que a mãe havia lhe contado a história do seu nascimento. Numa festa junina Elise, ainda menor de idade, havia dançado com quase todos os rapazes conhecidos. Mas nenhum era verdadeiramente do seu agrado, apesar de todos os pedidos de namoro. Quando a festança estava mais para o final, ela reparou num homem jovem, desconhecido e que não lhe tirava olho. Sem saber porque, liberou o sorriso que realçava sua bela e carnuda boca. Logo depois de um copo de quentão, estavam dançando aos beijos. Esta era a última coisa que Elise se lembrava até acordar do lado da rodovia, com os joelhos e braços esfolados e o vestido todo rasgado. Na madrugada, ao chegar em casa, foi imediatamente socorrida pela irmã mais velha. O pai olhando para o aspecto da filha não esperou para adverti-la de que, caso tivesse pego barriga sem honra, ela estaria no olho da rua.


O caso acabou virando um dos assuntos favoritos da cidade, sendo que a cada dia aumentava o número dos que declaravam nas mesas de bar ter participado do "batizado" de Elise. Com o tempo a história foi sendo esquecida, e somente Luis, sujeito metido malandro, mas sempre quebrado, levantava novamente a lebre, relembrando e se gabando do evento no qual nunca esteve, na verdade. Isso foi o suficiente para que anos mais tarde o juiz de menores tivesse lhe atribuído a paternidade de Erika, após o falecimento da e.


Com a gravidez confirmada Elise foi expulsa da casa paterna, levando consigo apenas a roupa do corpo. Apesar de muito jovem ela tinha a consciência de que uma nova vida estava para chegar. Era necessário encontrar algum lugar para morar e conseguir um meio de vida. Graças à irmã foi possível arranjar emprego na mercearia do bairro rico, com parte do salário sendo descontado para pagar o aluguel do quarto dos fundos do prédio. E nasceu Erika. Passados alguns anos a mãe era gerente do estabelecimento e conseguira economizar o suficiente para comprar um terreno e iniciar a construção da sua a própria casa. O dinheiro que faltou foi financiado por um dos programas de habitação do governo federal. A partir daí a vida da mãe e da filha foi realmente feliz, sem contar a alegria das duas visitas anuais de tia Beti, que morava em Campo Grande.

De uma certa forma, repetindo a história da mãe, Erika olhou para a própria barriga e espontaneamente falou:

- Nós também vamos ser muito felizes. E eu prometo que não vou morrer.

João Carlos pensou que aquelas palavras fossem dirigidas a ele. Casado e pai de três filhos, afora uma produção fora de casa que havia causado a maior encrenca, não queria mais confusão na sua vida. Assim, depois de ter cobrado os serviços da garota na noite passada em Dourados, usou o argumento de uma carta de frete para São Paulo e foi a deixando lá mesmo.

São Paulo, a cidade grande, terra das oportunidades que todos falavam. O encontro com Tia Beti podia ficar para o futuro. Sem perder tempo, Érika usou sua arma secreta: um carinho especial aprendido com uma colega de babado. Colocando o caminhoneiro fora de si, foi dizendo:

- São Paulo, é? Aposto que vou gostar de lá. Vou com você, ?

Completamente rendido, o pobre do pai de família que pretendia levar uma vida mais comedida depois da última aventura fora de casa, não teve como não adiar por mais algum tempo os seus planos. Abriu a porta de seu velho Mercedes 1313 vermelho, embarcou a moça e ainda teve a sorte de carregar a caçamba com milho para a capital paulista. Foi meio estranho que o carregamento tenha demorado demais para ser feito, com algumas sacas sendo acondicionadas com todo cuidado no início da pilha. Passadas algumas horas, a dupla novamente ganhou a estrada. Mesmo podendo chegar ao objetivo no final do dia seguinte, João Carlos não resistiu em aproveitar a situação ao máximo. Afinal de contas, estando no inferno o melhor é abraçar o diabo, pensava ele. A rota acabou sendo feita no triplo do tempo previsto.

Finalmente, após quase uma semana de pouca estrada e muita parada, eles estacionaram dentro do depósito no Brás, conforme orientava a documentação. Ao desligar o motor do caminhão os portões do prédio estavam quase totalmente fechados. João Carlos e Erika repentinamente se viram cercados por uns oito homens, três dos quais apontavam armas na direção deles. Seguindo o mando do gordão, desceram do veículo e esperaram, sem reação, pela sorte. De início apenas foram colocados em duas cadeiras de plástico no canto do depósito com ordem de permanecerem quietos. Ficaram assim, ainda vigiados por um sujeito armado, enquanto os outros se apressavam descarregar a caçamba e o gorducho dava ordens para separar algumas sacas. Com um canivete abriu uma delas para verificar o conteúdo: algo que parecia tijolos verdes, como se fosse erva prensada. Diante daquele quadro, Erika não conseguia encontrar senso, ainda mais que João Carlos ao ver a saca aberta ficou visivelmente apavorado.

Com a carga toda descarregada os bandidos pareciam ter ficado mais tranqüilos. Mas isto não evitou que puxassem o motorista para um canto e lhe aplicassem uma severa surra. Enquanto isso acontecia, o sujeito de corpo avantajado pegou Érika pelos cabelos e, ao saber que não era a mulher nem filha do transportador, a arrastou para a pequena porta de saída do depósito, lhe lembrando várias vezes que ela nada tinha visto. Qualquer suspeita de delação e a moça apareceria boiando junto com o lixo do Tietê.

Não entendendo nada daquilo, o importante é que finalmente estava na rua. Caminhou apenas algumas quadras e se tranqüilizou ao encontrar uma grande feira ao ar livre, que não tinha nem comparação com aquela que uma vez por semana acontecia na sua cidade. Seguiu andando no meio daquele mar de gente e sorriu ao imaginar como Aparecido reagiria a tudo aquilo. Um dia teria que reencontrá-lo, pois o seu futuro filho ou filha haveria de ter um pai verdadeiro.

Com o dinheiro que tinha guardado procurou uma pensão, disposta alugar algum cômodo por pelo menos duas semanas. Mas os preços de São Paulo eram bem maiores. Além do mais, a cada dia as notas podiam comprar menos coisas e novas cédulas eram lançadas com valores cada vez maiores. Érika sabia que dinheiro no bolso era dinheiro jogado fora. O negócio era gastar o quanto antes. Na casa com os piores quartos conseguiu pagar antecipado quatro dias de estada, sobrando mais algum para comprar comida e um vestido novo na feira. O trabalho na rua não tinha como durar muitas semanas. Logo sua barriga iria crescer, o que espantava os clientes. Certa disso, a futura mãe trabalhava o tanto quanto podia à noite e durante o dia andava pela cidade na busca de alguma oportunidade.

E foi assim, depois de uns vinte dias vivendo na cidade grande, que passeando pela rua José Paulino, no Bom Retiro, encontrou, defronte a uma loja, o papel do outro lado da vitrine que dizia "Aceitamos costureiras com pouca prática; oferecemos acomodação". De uma certa forma, era reiniciar a vida da sua própria mãe. Naquele mesmo dia se mudou, sendo aceita no emprego graças ao conhecimento de costura aprendido nas visitas de Tia Beti e uma leve ajuda da sua arma secreta, aplicada no coreano que todos chamavam de Jacozinho...

sexta-feira, 6 de julho de 2007

Capítulo 3 - Aparecido em Miami

Capítulo 3 – Aparecido em Miami

Era o maior alvoroço na enfermaria. As poucas macas estavam lotadas e os exaustos doentes mais sortudos conseguiram se acomodar no sofá e nas poltronas da sala de descanso dos enfermeiros. O resto não tinha saída, senão ficarem prostrados no chão mesmo. Pelo jeito, o bandido da salmonela havia atacado novamente. Ninguém tinha pistas de quem era ele. Mas já há algum tempo alguém estava contaminando não se sabe como os alimentos das lanchonetes preferidas dos funcionários do aeroporto. No início, pensaram em acidente; na primeira repetição atribuíram o fato à coincidência; mas três dias depois, outro foco em restaurante distante das lanchonetes, deu a certeza de que existia mesmo alguém planejamento e executando ataques à saúde dos freqüentadores do aeroporto de Guarulhos. Em meio a tudo, chega Aparecido, sendo carregado por uma padiola, ainda desacordado.

A comissária de bordo, com seu jeito pouco cortês a ponto de já ter sido alvo de reclamações de alguns clientes da companhia aérea, foi logo ao encontro da jovem que usava jaleco branco, com um estetoscópio parcialmente saindo do bolso da frente:

- Você é a plantonista deste lugar? Estou deixando este passageiro. Faça um bom trabalho

- Espere um pouco, disse Dra. Dolores, segurando a comissária pelo ombro. Preciso fazer algumas perguntas antes de dar a entrada do paciente na enfermaria.

- Então faça logo essas perguntas, que eu tenho que voltar correndo para a aeronave. Essa bagunça dos controladores de vôo atrasou meu dia em quase 8 horas.

- Pelo que eu sei eles só estão sendo responsáveis, para evitar a possibilidade de novos acidentes, como aquele de outubro. Mas isso não é o importante agora. Por favor, meos dados do passageiro e conte o que aconteceu com ele, que aparenta estar em estado de choque.

- Sei o que aconteceu com esse cara. Na hora que todo mundo desembarcou ele ficou parado na poltrona. Para meu azar, estava perto dele e o chacoalhei para acordar. Ao invés disso, ele se caiu para cima de mim. Daí o chefe de cabine mandou trazer a maca e sobrou para mim acompanhá-lo até aqui. Verifiquei, e tem um RG mais para do que pra no bolso da calça. Mais alguma pergunta, ou posso ir embora?

- Nada disso, em primeiro lugar, você ou outro representante da companhia aérea deverá se comunicar com os familiares do Senhor Aparecido (olhando para a identidade).

- Não tenho tempo para isso. Daqui a pouco ele acorda e acabou o problema.

- Sinto dizer, mas talvez o paciente não recupere consciência tão facilmente. Por algum motivo, o estado de choque dele parece ser muito profundo. Se você tiver mesmo de embarcar agora, poderá fazê-lo se alguém da sua empresa vier substituí-la aqui.

- Então tá, liga para esse número e diz que eu mandei alguém vir para . Tchau.

- Queridinha, eu estudei seis anos, fiz mais dois de residência e tenho 3000 horas de cursos de especialização. É claro que não ralei tanto para ser menina de recados deu uma aerovelha, digo aeromoça qualquer.

O bate-boca continuou e não foram poucas as vezes que os internos menos debilitados pela salmonela tiveram de apartar tentativas de arranhões e puxões de cabelo. Para sorte das duas, num dos breves momentos sem berros e agressões, chegou o comandante da aeronave para pessoalmente saber das providências que foram tomadas com seu passageiro. Ao identificar o perfil de Leonel por cima do biombo da sala de atendimento médico, Maria Cândida instantaneamente trocou o olhar de fogo por um rosto de inacreditável serenidade.

- Léo, estou aqui atrás. Eu ia voltar para o avião, mas antes preciso ligar a alguém da empresa para ficar aqui, pois estou preocupada com o estado de saúde deste senhor, ainda desacordado. E você, conseguiu descansar um pouquinho?

Enquanto falava a Comissária usava o telefone para chamar alguém da companhia aérea, que não demorou mais de dois minutos para chegar. Ao sair com as costas da mão encostadas no lado de Leonel, fechou lentamente a porta da enfermaria, quando soou uma enorme vaia. O piloto curioso, perguntou o motivo de tal comportamento, e ela prontamente respondeu de forma muito doce.

- Acho que foi porque eu não pude ficar mais tempo com o coitadinho dos doentes. A médica de plantão parecia muito perturbada, sem nenhum controle emocional. Então, enquanto eu esperava alguém da empresa, não resisti e comecei administrar compressas nos mais febris. Você sabe como eu sou, Léo?

Leonel agora tinha certeza: Maria Cândida era a mulher perfeita para colocar um ponto final na sua viuvez de cinco anos, quando a esposa teve complicações de parto. Finalmente poderia resgatar a filha dos rigores da avó materna, pois com o casamento a nova esposa deixaria de voar. E com estes planos na cabeça atravessou o finger e, sorridente, sentou na cabine de comando para fazer o próximo trecho.

Na enfermaria, o desacordado Aparecido estava em envolto em crescente mistério. Pelos dados do passageiro foi possível encontrar seu telefone residencial de Brasília. Ao ser comunicada do estado de choque do marido, Cícera deu outras informações.

- Faz menos de uma hora que deixei Aparecido no hospital, aqui na Asa Sul e voltei para casa para pegar a carteira do plano de saúde dele.

Sem saber o que fazer, o despachante da companhia aérea apenas desligou telefone. Passados uns dois minutos ele conclui ser melhor checar os dados do passageiro. A identidade, que agora estava em seu poder, tinha uma pequena diferença do bilhete de passagem emitido, que o sobrenome do documento era Ferreiro e no ticket estava registrado Ferreira. Mesmo sendo um erro muito comum, ainda seria prudente confirmar o número do RG. A conclusão foi óbvia: quem embarcou foi outra pessoa. Comentando em primeiro lugar a descoberta com Dra. Dolores, que estava fazendo uma pausa para aliviar a indignação diante da cenas que participara e assistira alguns minutos. A médica ficou curiosa e foi observar paciente mais uma vez. Mas ao voltar à sala da enfermaria, se deparou com a maca onde deveria estar Aparecido, completamente vazia. Ele havia escapado.

Aparecido, caminhando pelo Aeroporto Internacional de Guarulhos verificou que o local era uma mina de ouro em termos de latas de alumínio abandonadas em bares. Naturalmente, tirou do bolso interno do paletó o saco plástico cuidadosamente dobrado e começou a coleta. Sobre o seu apagão pessoal, tinha consciência de que algo diferente havia ocorrido, mas preferia se manter fiel ao lema da sua existência: seguir em frente toda a vida. Em menos de dez minutos seu recipiente estava lotado. Assim, foi na direção do que achava ser a saída. O próximo passo seria encontrar sua fiel carroça. Cidão até estranhou que aquele local tinha portas que se abriam e fechavam sozinha, o que não costumava existir no aeroporto de Brasília. Chegando na rua verificou que era noite alta e chovia torrencialmente. O melhor era esperar raiar o dia mesmo e depois seguir o caminho que deveria ser seguido.

De volta ao terminal de desembarque, subiu ao piso superior na esperança de encontrar algum local sossegado e seguro para dormir. O que pareceria estranho naquele momento, havia se tornado algo completamente comum, pois chegavam aos milhares o número de exaustos viajantes com seus vôos atrasados mais de 3 horas e sem perspectivas para embarque nos próximos minutos. O local escolhido, então, foi nas proximidades de uma farmácia no terceiro piso.Aparecido se acomodou e dormiu profundamente por algumas horas.

Despertou quando ainda estava escuro, com alguém berrando algo como:

- Irmãos, sigam-me, venham comigo seguir Bispo Ernani, na direção do eleito; Ele em breve vai ressuscitar e nos conduzir ao paraíso. Nós sabemos o caminho que conduz a Ele e temos a missão de conduzir os fiéis. E salve a Igreja Ressuscitar do Divino. Venha a mim, a sua Bispa Xuxa, todos os fiéis dispostos a seguir o caminho e ir em frente.

Aparecido ficou sensibilizado com aquelas palavras por três motivos. Em primeiro lugar sempre se considerou uma pessoa fiel, e ai de quem duvidasse disso. As palavras ditas, sobre seguir em frente, era tudo o que ele pensava. E finalmente, Xuxa era o nome da sua irmã mais velha, que há muitos anos não via. Talvez fosse ela. Assim, chegou vagarosamente no pequeno grupo de pessoas ao redor da Bispa, que quando reparou na sua presença, disse naturalmente:

- Aproxime-se, meu irmão.

A emoção foi forte demais; depois de muitos anos reencontrara pelo mundo a irmã mais velha. Chorando, Cidão ajoelhou-se e abraçou as pernas de Xuxa, aconchegando seu rosto no ventre da religiosa. Ela, por sua vez, posicionou suas mãos acima das orelhas de Aparecido, que, em meio ao pranto, perguntava sobre a mãe e as irmãs Mara e Eliana.

- Estão todas em paz com o criador, agora levanta meu irmão, que é hora de seguirmos o caminho.

Por sorte, Aparecido se colocou em instantes antes de levar uns sopapos do ciumento bispo Ernani, que se conteve ao ver a esposa desvencilhada daquele abusado, ou maluco.

Além do mais, seguir o caminho era com ele mesmo. Então não pensou duas ou uma vez para se juntar aos Bispos e outros três seguidores, cada qual com um jeito mais estranho. Após rápida refeição numa lanchonete, ao lado daquela com contaminação de salmonela, Xuxa pediu os documentos de todos para encaminhar a viagem. Todos eles apresentaram uma caderneta verde cheia de folhas, mas Cidão compareceu com seu velho RG. Perguntado a respeito do passaporte, logo ficou claro para os religiosos que ele nem imaginava do que se falava. Sem problema, depois de algumas horas, Aparecido era presenteado com aquela caderneta bonita, e dentro tinha um monte de carimbos estranhos, muitos dos quais eram desenhados ao invés de terem letras. E o mais importante: sua foto do RG estava lá toda orgulhosa no início da caderneta. Uma troca para melhor, pensou ele. Angélica, toda cheia de palavras, iria ficar com inveja. Nesse pensamento, sentiu falta da irmã caçula. Mas tudo bem, agora estava ao lado da primogênita e ela também falava em seguir em frente.

Foi interrompido em tais reflexões com a ordem de Bispo Ernani de se levantar para seguirem o caminho. Obedecendo, seguiu atrás do grupo até uma sala cheia de barraquinhas parecidas com as das quermesses, só que menores, onde todos apresentavam a caderneta. Ele fez o mesmo e passou rapidamente para outro corredor longo, no decorrer do qual muita gente estava sentada pacientemente. Ao fundo, havia uma pequena fila que começava a se mover e para lá foram. Pouco depois Cidão novamente estava sentado em uma daquelas poltronas que pareciam de dentista. Antes da nave começar a se mover, Xuxa entregou a cada fiel um livro de orações. Não era para abri-lo, segundo as instruções da irmã; apenas segurá-lo firmemente até o destino final, o que garantiria a boa sorte na jornada. Abrir era proibido, repetiu algumas vezes para ser bem clara.

Aparecido sentiu o tranco do trator iniciando o deslocamento do avião rumo à pista de decolagem. Ficou apreensivo, tendo alguns flashes de memória da viagem de Brasília à São Paulo. Mas ainda era noite (e chuvosa) fazendo com que a decolagem não o impressionasse tanto. Ainda mais, estava junto da irmã mais velha que o protegeria e conduziria seu caminho adiante. Então, o estado de choque foi trocado pela fantástica paisagem da floresta amazônica vista do alto ao amanhecer. A comida boa deixou tudo ainda melhor. Mais algumas horas e o jato aterrissou.

Bispo Ernani assumiu a liderança do grupo. Caminharam todos juntos na direção de outras barraquinhas de quermesse (na visão de Aparecido). Cada um dos seguidores foi posicionado em fila diferente, mas Cidão foi o primeiro a ser encaminhado. Vantagem concedida pela irmã, pensou ele. Fazendo como todos, tirou sua caderneta verde pronto para mostrá-la ao senhor com uniforme, como ocorreu horas antes. Mas dessa vez tudo acabou sendo diferente. O oficial de alfândega norte-americano – afinal eles estavam em Miami – ao olhar o passaporte de Aparecido reparou imediatamente na grosseira falsificação. Prontamente acionou a polícia de imigração, centralizando a atenção de todos.Os demais guichês continuaram a funcionar e no estabelecimento da confusão, todos os demais membros da Igreja Ressuscitar do Divino, tiveram seus vistos de entrada carimbados sem despertar maiores atenções. Enquanto isso, três homens fardados imobilizavam Cidão, que se recusava a deixar quem quer que seja olhar e abrir o livro de orações, obedecendo assim às ordens da irmã. Mas ele não era páreo para os atléticos guardas e logo foi desvencilhado da publicação. Ao ser aberta, ao invés de páginas, um pacote muito bem embalado. Seu conteúdo: notas e mais notas de um dinheiro verde, que Aparecido nunca havia visto. Neste exato instante, ele viu a irmã e o resto da comitiva saindo apressadamente daquela grande sala. O berro que deu para chamar Xuxa causou alarde, quase pânico. Imediatamente foi novamente imobilizado, mas desta vez com a ajuda de algemas.

Seu destino: o xadrez do aeroporto de Miami. Na carceragem, pelo menos, conseguia entender as palavras faladas por quem lá estava. Cada qual contava a sua história e alguns se vangloriavam do maior número de detenções pela imigração. Mas Aparecido não gostava de conversa e estava triste. Acostumado à imensidão das rodovias, ele agora estava preso a uma cela sem janelas; impossível ver a luz do sol.Meio sem sentir, sentou no chão, num canto, e passou a cantar as músicas que conheceu pela vida afora. Todos silenciaram para apreciar aquela voz triste, mas serena e de uma afinação impecável. Em um certo momento do show involuntário, Aparecido começou e interpretar a música “É o Amor”, de Zezé de Camargo. A surpresa ficou por conta do acompanhamento de um guarda da carceragem conhecido como Tobby The Little Dog, apelido ganho em função da sua baixa estatura e corpo muito peludo, além do hábito incomum de mostrar suas emoções por meio de latidos e outras expressões caninas. No momento em que Cidão entoava o refrão da canção (é o amor, que mexe comigo...), tobby soltava seu profundo uivo de acompanhamento. Por incrível que possa parecer, existia harmonia entre os dois.

Capítulo 2: Aparece o Segundo Aparecido

Capítulo 2 – Aparece o Segundo Aparecido

Segue em frente toda a vida! Esta foi a última coisa que Cidão lembrava ter ouvido ao deixar Florianópolis e começar a sua jornada por deus sabe aonde. Ele não sabia precisar a idade que tinha quando tudo começou. Lembrava vagamente de seu pai, que alguns diziam ter morrido de tiro. Mas sua mãe durante algum tempo disse a ele e suas irmãs que Jorge tinha se afogado, tirando camarão de uma laguna.

A tristeza causada pela Iara não teve muito tempo para ser sentida. Matilde, poucos dias depois do desaparecimento do marido mostrou para os filhos o novo companheiro. Nem tinha passado uma semana, Aparecido e Angélica, a caçula que ainda nem sabia ir ao banheiro sozinha, já dormiam embaixo de marquises, ou no lugar em que estivessem e não fossem expulsos. Dos outros três irmãos só Xuxa, a mais velha, ficou na casa junto com a mãe e o novo companheiro, participando cada vez mais das cachaçadas.

Num dia, Cidão achou melhor levar Angélica para a mãe, já que ele não sabia o que fazer, pois a menina só estava dormindo e chorando já há algum tempo. Entrando pelo pequeno pátio onde antes o pai costumava plantar verduras, sentiu um cheiro ruim e chegou a ver um pequeno monte de terra do lado da cerca de madeira quase podre, dentro da qual saia um pedaço de tecido verde mar, igualzinho àquele vestido que Matilde costumava usar. Dentro de um dos dois quartos, num colchão acomodado no piso, Xuxa dormia num canto; e o padrasto noutro. No meio estava a garrafa de aguardente.

Só lhe restou pegar o carro de mão que era de Pai Jorge, acomodar a irmã em uma coberta e sair de vez daquele lugar horripilante. Foi bater na casa da madrinha de ambos. Tia Xica pegou a menina, levou no posto de saúde, onde a pequena levou uma injeção de Benzetassil. Se antes passara pela cabeça a idéia de pegar a afilhada para criar; o diagnóstico dos médicos de febre reumática a convenceu entregar a criança novamente para o irmão, também criança, dar-lhes uns trocados e mandá-los para bem longe.

Assim Aparecido e sua irmã iniciaram uma história de vagar. E lá estavam perto da Lagoa da Conceição quando um Chevrolet Opala parou perto deles e perguntou para o transeunte próximo o caminho para sair da ilha. Depois de algumas explicações, o senhor que explicava a rota finalmente complementou com o "segue em frente toda a vida". Era um bom lema para usar e a partir daquele momento Cidão conduziu sua existência buscando permanentemente seguir em frente. Com o carro de mão fazendo às vezes de mala e carrinho de bebê ao mesmo tempo, demorou dois dias para finalmente chegar ao continente, cruzando a ponte Hercílio Luz, não sem antes ter que fazer uma longa parada para convencer o posto de saúde a dar outra injeção de benzetassil em Angélica, novamente ardendo em febre.

Tomando a Br 101, seguiu sem saber porque a direção do norte e foi atrás do caminho que lhe parecia mais verde. Catando frutas, raízes, milho e matando passarinhos e pequenos animais à pedrada alimentou a si próprio e a irmã, nas raras vezes em que os dois não recebiam comida de caridade, ou faltava algum bico para ganhar uns trocados.

Afinal de contas, apesar de um tanto quanto incomum, eles acabaram tendo uma infância feliz. Não demorou muito para que os modos ríspidos a que estavam acostumados na casa dos pais fossem completamente abandonados em troca de um convívio repleto de carinho entre os dois. E foi assim: seguindo em frente toda a vida, caminhavam pela estrada, nunca retornando ao passado e não se demorando mais do que alguns dias ou semanas em alguma cidade ou vila; somente o necessário para conseguir dinheiro para comida e roupas que servissem, já que os dois não paravam de crescer.

Num dia frio de julho, como de costume, estava Aparecido caminhando pelo acostamento da rodovia, enquanto sua irmã dormia no carrinho de mão, agasalhada por uma confortável coberta que haviam ganho há pouco tempo. Diante de uma bifurcação ele parou para decidir o caminho a ser seguido. Sendo um bom aluno nos tempos de escola municipal, estava alfabetizado suficientemente para entender o que dizia a maior parte das placas de sinalização. Naquela situação, uma seta indicava o caminho para Joinville e Curitiba, enquanto outra mostrava que à esquerda estava Blumenau, cuja rota parecia mais bonita e a subida menos íngreme. Assim, atravessou a faixa e tomou rumo oeste.

Vez por outra acontecia de se juntarem por algum tempo com outros andarilhos. Perto de Curitibanos conheceram o Vovô que lhes ensinou as maneiras de pedir dinheiro nas saídas dos restaurantes e lanchonetes dos postos de combustível. Aparecido bem que achava mais fácil se oferecer para algum biscate; mas trabalhar era coisa que não se fazia, professorava o amigo, que por algumas semanas se dizia protetor. Diga-se de passagem, o garoto não gostava do incessante hálito de Vovô, que lhe trazia a recordação da triste época entre o desaparecimento do pai e o definitivo abandono do lar. Naqueles dias Angélica já não conseguia mais se acomodar por muito tempo no carrinho de mão. Suas pernas sobravam e a energia da menina era muito grande para evitar sua constante tagarelice e necessidade de movimento. Durante aquelas semanas os irmãos quase se acostumaram a entregar o dinheiro da esmola para o protetor, cujo comportamento se tornava cada vez mais brutal. A doçura inicial de Vovô foi substituída por promessas de porrada e muita bebedeira. Numa manhã, finalmente a ameaça se tornava real: Aparecido foi acordado com um tabefe no rosto desferido pelo bêbado, que o desvencilhou dia Angélica, acostumada a dormir agarrada ao braço do irmão. Colocando a menina no ombro direito, tal qual um saco de laranjas, Vovô foi cambaleando lentamente na direção de um caminhão com a porta aberta, onde havia um homem esperando. A mente do garoto reviveu a cena do padrasto, a garrafa de pinga e Xuxa no colchão; enquanto a ponta do vestido da mãe saia de dentro da terra. Naquele momento ele entendeu o significado da morte; e sem pensar, desatou a correr, só parando na hora de desferir o mais forte pontapé de que era capaz atrás do joelho do vagabundo, sendo isto suficiente para derrubá-lo e resgatar a menina. Enquanto o velho se contorcia, ao mesmo tempo em que fazia ameaças mortais, os dois irmãos rapidamente foram ao local onde escondiam o carrinho de mão, sempre pronto para a partida, e seguiram adiante pela estrada. O cheiro de cachaça dali para diante sempre deveria ser evitado... Segue em frente toda a vida, pensou mais uma vez Aparecido.

O caminho continuava e uma mania se estabeleceu entre os irmãos. Cidão lia, ainda com alguma dificuldade, as placas indicativas de cidades e outdoors, e Angélica olhando para o mesmo objeto repetia as palavras proferidas. Mas na passagem por Xanxerê começou a ocorrer algo engraçado. Aparecido tinha deixado de pronunciar o aviso "Máquinas na Pista". Aquele hiato foi preenchido pela doce voz da menina que à custa de visível esforço de entendimento conseguia decodificar aquele símbolos e transformá-los verbalmente nas palavras que indicavam. Nas semanas seguintes ela estava empenhada em ler as placas mais rapidamente que o irmão, o qual, com o tempo abandonou o hábito, deixando-o ao cargo dela. Mais algum tempo e Angélica já lia qualquer papel que lhe aparecesse diante dos olhos.

Saber traduzir o que dizem as letras é uma coisa; mas entender o significado das palavras escritas é um caminho bem mais desafiador. Assim, nas paradas para biscates nos postos de gasolina da estrada, a garota aproveitava o descuido do irmão em trabalho para entrar, ao contrário das ordens, nos restaurantes e lanchonetes e perguntar para os clientes o significado de pedágio, concreto, alimentação e outras tantas palavras que decifrava a fonética, mas queria conhecer os motivos para seu uso. Ela estava crescendo muito bela, mas sem perder a meiguice da primeira infância. Assim, ao vê-la primeira vez, seu aspecto maltrapilho e por vezes fedorento, logo era suplantado pela cativante personalidade que desenvolvia. Certa vez, numa churrascaria pouco depois de Francisco Beltrão, ela foi surpreendida deitada de barriga para o chão ao lado de um menino pertencente à família da mesa do lado, preenchendo com ele os jogos da revista Recreio. Aos costumes, a repulsa inicial da mãe do garoto foi prontamente substituída por profunda admiração ao observar que Angélica, isto sim, estava ensinando o seu filho. E mais surpreendente ainda, ele dava sinais de estar aprendendo, o que sempre foi tão difícil. Era assim: volta e meia lá estava ela fazendo suas perguntas, e além de aprender a resposta, procurava falar da mesma forma que as pessoas que tinham carro.

Enquanto isso Aparecido reparava no rápido surgimento de pêlos em várias partes do corpo, ao mesmo tempo em que batia uma inexplicável angústia e calafrios quando enxergava uma moça bonita. E foi em Cascavel, após passarem algumas semanas por uma rodovia mal cuidada, onde todos falavam de maneira estranha, que Aparecido pegou dois meses de trabalho como frentista, substituindo os empregados do posto que entravam em férias entre janeiro e fevereiro. Depois do expediente ele cada vez chegava mais perto das meninas com cara pintada que costumavam ficar em volta dos caminhões ao nascer da noite. Em especial, sentia inexplicável atração por Érika, chegando a ficar enervado quando ela se demorava muito nas cabines. Os colegas de trabalho logo perceberam o engatamento do rapaz, bem como o seu desconhecimento dos assuntos de homem. Explicaram o que fazer: se aproximar da rapariga com cinco ou dez cruzados, no máximo vinte; e se ela pegasse no dinheiro seria só segurar a mão dela, para ser conduzido ao local certo.

Aparecido, apesar de suar frio e tremer, fez exatamente o que lhe indicaram. Ao estender a mão com os valores, reparou que por baixo da grossa camada de batom saiu um sorriso com pureza quase infantil. Gentilmente ela puxou para si apenas a nota mais miúda e o conduziu para uma barraca oculta no meio do matagal das proximidades. Pela primeira vez Aparecido não dormia ao lado de Angélica. A aventura da noite prosseguiu com trocas de afagos ao amanhecer.


Hora de ir trabalhar. Cidão levanta-se rapidamente e ainda tem tempo de procurar pela irmã. A pequena, ao vê-lo, apenas o fitou rapidamente com olhos tristes e voltou a ler a Luluzinha que havia ganho no dia anterior. A mágoa, porém, se transformou em imensa alegria quando, na noite seguinte, Érika foi procurar pelo companheiro. Logo percebeu que ele estava dividido entre cuidar do sono da irmã e o usufruir daquele novo sentimento que lhe atingia o mais íntimo do seu íntimo. Sensível àquela cena, a jovem cortesã tratou de resolver sabiamente a situação.

- Prazer, sou Érika e tenho um lugar onde nós três podemos ficar juntos.

- Eu quero, disse Angélica, com largo sorriso.

E já no caminho para uma pensão das proximidades, as duas tagarelavam sem parar. Só bem mais tarde, quando a caçula adormeceu pela primeira vez em cima de um colchão, é que Erika permitiu a aproximação do impaciente Aparecido.

No dia seguinte, a transformação: às custas de um bom banho com água quente, xampu e o zelo maternal de Erika, aquele ser de cabelo cinzento e quebradiço de tão duro, havia deixado aparecer a linda menina ruiva, que estava escondida por trás de camadas de poeira da estrada acumuladas ao longo dos últimos anos. A nova amiga ficou ao mesmo tempo maravilhada e preocupada. Na hora que estava impondo o mesmo tratamento ao namorado, ela já foi avisando:

- Não deixe Angélica chegar perto dos carreteiros, senão ela pode acabar na vida.

Mesmo tendo cruzado a fronteira entre a meninice e o homem, Aparecido pouco entendia sobre o assunto, mas ficou curioso para saber da história de Érika.

- Querido, eu era muito feliz até o ano passado quando mamãe morreu. Isto aconteceu logo quando tinham encerrado as férias na escola. Eu estava mesmo ansiosa para começar a cursar o segundo grau. Tinha sido a melhor aluna da classe em todos os anos até a oitava série. Mas a partir de então tudo mudou. O juizado resolveu me entregar para meu pai, que eu não conhecia. Em poucos dias ele tinha tomado conta da casa que minha mãe montara e ainda pegou o dinheiro da poupança dela para comprar um Corcel que acabou destruído numa murada. Depois disso ele me trouxe aqui pelos cabelos, oferecendo o corpo da virgenzinha (falando isso com ódio) para caminhoneiro que lhe desse mais dinheiro. Ofertas não faltaram, apesar de todo o meu choro, rezas e pedidos de piedade. E aí, aconteceu o que aconteceu. Ele pegou o dinheiro que havia acertado e falou que dali a duas semanas estaria de volta para pegar mais. E que era para mim trabalhar direitinho, senão o pau iria correr solto. Isso faz quase dois anos que aconteceu. Graças a Deus tem uns três meses que o pai não vem aqui pegar dinheiro. Acho que desistiu ou aconteceu alguma coisa a ele. Melhor para mim, consegui guardar um dinheirinho. E até que tem uns caminhoneiros bem legais, disse com um sorriso sapeca.

Diante da provocação, Aparecido que não entendeu quase nada da conversa da garota, sentiu o ciúme brotar, e sem pensar convidou Érika para seguir em frente com eles. A moça prontamente aceitou a oferta e pegou o caderno para fazer planos. Seu sonho era ir para Campo Grande, onde tinha uma tia materna. Até tentou ir para lá, mas o juiz de menores não permitiu. Ela realmente havia gostado do namorado e não foi nenhum sacrifício parar com os programas. A partida deles iria acontecer no início de março, quando encerraria os dois meses do trabalho de frentista. Nesse meio tempo Érika se deliciou matando saudades da vida em família. Mas em vez de filha, ela tinha o papel de esposa e mãe, o que era maravilhoso. Enquanto não chegava o ansioso momento da partida, seu passatempo favorito era ensinar Angélica, que era ávida por aprender, e tudo compreendia com muita facilidade, a ponto de se tornar uma exímia leitora e superar a cunhada (uma senhora do restaurante disse para ela que é assim que se chamava a mulher do irmão) nas contas da matemática.

Finalmente, tudo estava pronto. O dono do posto já havia pago o último salário de Aparecido, incluindo gorda gorjeta por bons serviços e o convite para ficar lá permanentemente. O rapaz, segurando o carrinho de mão; a mulher apaixonada enrolada no seu braço; e a irmã com seus cabelos ruivos ao vento, carregando um grosso livro, presente de despedida da caixa da lanchonete; tomaram o caminho para Umuarama, de acordo com o plano traçado por Erika.

A primeira noite na estrada foi de aventura e festa; a segunda pura excitação; mas no terceiro dia veio a chuva e o desconforto de caminhar com roupas molhadas. Ao mesmo tempo, a nova componente da turma era obrigada a parar freqüentemente por ataques de vômito, o que a enfraquecia para a jornada. No final da segunda semana, Érika se sentia como se fosse uma Angélica com mais idade, quando a encontrou de cabelos duros, cinzentos e pele coberta por camadas de poeira, confundindo-se com o bronzeado da insolação excessiva. Ela não entendia como Aparecido e sua irmã conseguiam ser tão felizes naquela situação. Para eles tudo era uma questão de seguir em frente toda vida. Assim, numa parada para busca de trabalho entre Toledo e Palotina, a descoberta de uma carreta em abastecimento com placas de Campo Grande acabou sendo uma tentação irresistível. Enquanto Cidão preparava cimento e Angélica, depois de um belo banho, conversava com as gentes dos carros que paravam na lanchonete para alguma refeição, Erika se acertou com o caminhoneiro, embarcando no veículo que logo seguiu viagem. A cena foi vista pelos irmãos, que ficaram como estatelados, sem reação. A moça, como despedida, abriu a janela e chorando berrou que os amava, mas deveria seguir seu próprio caminho.

Os próximos dias foram muito silenciosos. A saudade batia forte e o que restava de Erika era só o retrato dela com o uniforme da escola, o qual Aparecido guardou durante toda a vida como sua maior relíquia. Umuarama já não era mais destino. Afinal de contas, aquele futuro já fazia parte do passado e a regra mandava seguir em frente toda a vida. Mas tudo estava mudado. A vaidade de Angélica e seus cabelos os obrigavam a paradas maiores, onde o relento dos postos de combustíveis era substituído por quartos em pensões. Além do mais, a menina desabrochava e sua sede para leitura era cada vez maior, gerando a necessidade de maior tempo de trabalho para seguir adiante. Assim, ao chegarem nos arredores de Araçatuba, aquela que mal sabia caminhar em Florianópolis, se transformara em uma linda ruiva de aproximadamente 1m 75 cm. Além disso, o aprendizado de Angélica a fez, naturalmente, assumir a liderança da família, o que caiu no gosto de Aparecido. Afinal de contas, ele preferia trabalhar recebendo ordens e não ter a preocupação de antecipar os próximos passos de quem quer que seja.

Não demorou muito para que a irmã seguisse seu próprio destino. A longa caminhada havia dado a oportunidade para que Aparecido aprendesse várias profissões. Além de frentista, ele desenvolveu notável habilidade como pedreiro, cortador de cana, tendo também algumas noções de hidráulica. Não foram poucos os convites para estabelecer raízes. Sua regra era seguir em frente toda a vida; este era seu destino, pensava. Já um homem feito, ele nunca havia tido sequer carteira de identidade até meses antes da despedida de Angélica. Nas suas leituras (que já incluía jornais e revistas informativas de pouco atraso) ela compreendeu perfeitamente que mesmo sendo uma andarilha, tinha direitos em seu país, podendo usá-los na medida em que conhecesse funcionamento das coisas. Por esse motivo, durante muito tempo encheu os ouvidos de Aparecido para que fizessem identidade e CPF. Mas o rapaz que, já há algum tempo, mesmo não sabendo, havia ultrapassado a barreira dos 20 anos, ainda evitava qualquer problema que os pudessem fazer parar no juizado. Tal impertinência durou até 1991, quando passando por Uberlândia os irmãos foram atraídos por algo que parecia uma grande quermesse. Pensando que fosse a entrada de algum espetáculo, ou distribuição de comida, se posicionaram atrás de uma longa fila. Ao final da tarde estavam de cabelo cortado, com os dentes em dia, alimentados e portando cédula de identidade, CPF e carteira do trabalho. Pela primeira vez desde a chamada da escola, Aparecido pronunciava seu nome completo: Aparecido dos Santos. Mas a senhora responsável por tal registro ouviu não se sabe de onde o termo Ferreiro. Automaticamente acabou batizando o rapaz de Aparecido dos Santos Ferreiro e a irmã de Angélica dos Santos Ferreiro. No início da noite saíram do Ação Global, na busca de algum pouso seguro e seco, evitando por algumas horas a chuva que os acompanhava havia semanas.

Aquele foi um dia tão movimentado que eles nem repararam no rapaz de óculos e jaleco, que não tirava com os olhos dos dois. Inclusive os seguiu, escondido no seu carro, até a pensão em que alugaram um quarto. Na manhã seguinte saíram do estabelecimento com o intuito de buscar a direção da rodovia mais próxima. Doutor Sandoval não perdeu mais tempo e estava esperando pelos dois: meio tímido e inseguro, abriu a porta da camionete e ofereceu carona. Angélica, atônita, se parou a trocar olhares com o rapaz. Aparecido foi rápido. Puxou a irmã pelo braço e os dois seguiram caminho. Depois daquela cena, como que por mágica, Cidão começou a sentir saudades da longínqua Érika. Mas os encontros à distância com o homem do jaleco passaram a ser freqüentes por onde eles estivessem. Até que meses mais tarde, em Itumbiara, enquanto Aparecido trabalhava numa obra de posto de combustível, Sandoval finalmente se aproximou de Angélica. Pouco depois, ela foi, já segurando na mão de seu homem, na direção do irmão para a despedida.

- Cidão, a minha caminhada termina aqui. Vou fazer minha família com Sandoval. Ele será bom para mim. Também quero estudar como fez Érika e ter profissão. Então, este é o nosso adeus meu irmão, a não ser que você queira voltar para Uberlândia e ficar lá.

Aquelas palavras foram emocionantes para os três. Aparecido ficou em silêncio, apenas baixando a cabeça para esconder as lágrimas. No seu íntimo sabia que este momento estava para acontecer e queria felicidade da irmã, cuja linha de destino haveria mesmo de se separar da dele algum dia. Por fim, antes de virarem de costas, cada qual na sua direção, Sandoval lhe colocou nas mãos um cartão com seu endereço e telefones para contato. Este papel foi colocado junto com a fotografia de Erika, que vista agora, não parecia mais o retrato de uma mulher, mas sim uma menina com olhos sonhadores.

Depois daquela despedida, muito tempo havia se passado e afora algumas reprises de recordação, Aparecido evitava o hábito de se prender ao passado, sempre seguindo em frente toda a vida. No caminho até Brasília, a única coisa diferente que aconteceu foi a troca do velho e apodrecido carrinho de mão pela carroça de papeleiro, comprada novinha em folha numa fábrica de Anápolis.

E
estava ele indo na direção do aeroporto de Brasília na véspera de Natal de 2006, com o objetivo de catar as latas de alumínio dos restaurantes e bares do terceiro andar. Normalmente não permitem a entrada de maltrapilhos naquele lugar. Mas Cidão sabia como se comportar. Certa vez começou freqüentar cultos em uma igreja e foi escolhido pelo pastor para recolher donativos dos fiéis. Para isso que ganhou terno, gravata, sapato preto e duas camisas que logo começaram a se mostrar mais úteis do que o imaginado e por isso eram tratados com todo o zelo e asseio na parte mais protegida da carroça (uma espécie de gaveta inventada por ele mesmo). se preparando para estacionar seu veículo perto da espera do ponto de táxi, onde fez muitas amizades lavando carros, ele recebeu o papel no rosto e o guardou no bolso para depois ver do que se tratava. Atrás da árvore de sempre, trocou a roupa, não se esquecendo de pegar a folha amarela. Mas o momento era para apressar. Afinal, a tarde estava no final e precisaria fazer pelo menos cinco viagens entre o aeroporto e a carroça para carregar discretamente razoável quantidade de latas manualmente prensadas, destinadas à reciclagem do Guará.

No
caminho, com alguma dificuldade, conseguiu ler o nome de Aparecido dos Santos Ferreira no bilhete aéreo. Evidentemente confundiu com seu próprio nome. Chegando na área de embarque, reparou numa grande fila de pessoas empunhando um papel parecido com o qual o vento havia lhe levado. Pelo jeito, parecia ser uma espécie de Ação Global, onde ele havia sido muito bem tratado, apesar da perda da irmã. Assim, até valia a pena esquecer das latas e aproveitar o corte de cabelo, o tratamento dos dentes e até fazer uma nova identidade, que a antiga, apesar de bem-cuidada, estava ressequida. Depois de mais ou menos meia hora de espera, Cidão chegou no atendimento do balcão da companhia aérea. A atendente, sem se perder em detalhes, pediu pelo bilhete com check in já feito e disse:

-
o vôo para Porto Alegre foi cancelado, mas podemos acomodar o senhor na aeronave que está encerrando o embarque agora, com destino ao Guarulhos, onde ainda uma conexão confirmada para o seu destino. Posso providenciar a troca?

Não entendendo nada do que foi dito, o andarilho catarinense, apenas fez sinal com a cabeça concordando com o que aquela moça de boca rápida e pequena falava. Prontamente, outra mulher uniformizada o pegou pelo braço na direção de labirintos que acabaram desembocando em algo que parecia um cano enorme, cheio de poltronas, que bem lembravam aquelas cadeiras de dentista. Aquilo era estranho. Mas na vida de Aparecido, de uma certa forma, tudo havia sido meio estranho mesmo. Assim, ele se acomodou no fundo daquele grande corredor, na poltrona ao lado daquela janela redonda.

Seus temores começaram quando aquela grande sala começou a se mover. Acabou perdendo os sentidos, mesmo permanecendo sentado, ao ter o corpo projetado para trás por um grande impulso e olhar pela janela as coisas da terra ficando cada vez menores.

foi abrir os olhos no ambulatório do Aeroporto Internacional de Guarulhos.