sexta-feira, 6 de julho de 2007

Capítulo 3 - Aparecido em Miami

Capítulo 3 – Aparecido em Miami

Era o maior alvoroço na enfermaria. As poucas macas estavam lotadas e os exaustos doentes mais sortudos conseguiram se acomodar no sofá e nas poltronas da sala de descanso dos enfermeiros. O resto não tinha saída, senão ficarem prostrados no chão mesmo. Pelo jeito, o bandido da salmonela havia atacado novamente. Ninguém tinha pistas de quem era ele. Mas já há algum tempo alguém estava contaminando não se sabe como os alimentos das lanchonetes preferidas dos funcionários do aeroporto. No início, pensaram em acidente; na primeira repetição atribuíram o fato à coincidência; mas três dias depois, outro foco em restaurante distante das lanchonetes, deu a certeza de que existia mesmo alguém planejamento e executando ataques à saúde dos freqüentadores do aeroporto de Guarulhos. Em meio a tudo, chega Aparecido, sendo carregado por uma padiola, ainda desacordado.

A comissária de bordo, com seu jeito pouco cortês a ponto de já ter sido alvo de reclamações de alguns clientes da companhia aérea, foi logo ao encontro da jovem que usava jaleco branco, com um estetoscópio parcialmente saindo do bolso da frente:

- Você é a plantonista deste lugar? Estou deixando este passageiro. Faça um bom trabalho

- Espere um pouco, disse Dra. Dolores, segurando a comissária pelo ombro. Preciso fazer algumas perguntas antes de dar a entrada do paciente na enfermaria.

- Então faça logo essas perguntas, que eu tenho que voltar correndo para a aeronave. Essa bagunça dos controladores de vôo atrasou meu dia em quase 8 horas.

- Pelo que eu sei eles só estão sendo responsáveis, para evitar a possibilidade de novos acidentes, como aquele de outubro. Mas isso não é o importante agora. Por favor, meos dados do passageiro e conte o que aconteceu com ele, que aparenta estar em estado de choque.

- Sei o que aconteceu com esse cara. Na hora que todo mundo desembarcou ele ficou parado na poltrona. Para meu azar, estava perto dele e o chacoalhei para acordar. Ao invés disso, ele se caiu para cima de mim. Daí o chefe de cabine mandou trazer a maca e sobrou para mim acompanhá-lo até aqui. Verifiquei, e tem um RG mais para do que pra no bolso da calça. Mais alguma pergunta, ou posso ir embora?

- Nada disso, em primeiro lugar, você ou outro representante da companhia aérea deverá se comunicar com os familiares do Senhor Aparecido (olhando para a identidade).

- Não tenho tempo para isso. Daqui a pouco ele acorda e acabou o problema.

- Sinto dizer, mas talvez o paciente não recupere consciência tão facilmente. Por algum motivo, o estado de choque dele parece ser muito profundo. Se você tiver mesmo de embarcar agora, poderá fazê-lo se alguém da sua empresa vier substituí-la aqui.

- Então tá, liga para esse número e diz que eu mandei alguém vir para . Tchau.

- Queridinha, eu estudei seis anos, fiz mais dois de residência e tenho 3000 horas de cursos de especialização. É claro que não ralei tanto para ser menina de recados deu uma aerovelha, digo aeromoça qualquer.

O bate-boca continuou e não foram poucas as vezes que os internos menos debilitados pela salmonela tiveram de apartar tentativas de arranhões e puxões de cabelo. Para sorte das duas, num dos breves momentos sem berros e agressões, chegou o comandante da aeronave para pessoalmente saber das providências que foram tomadas com seu passageiro. Ao identificar o perfil de Leonel por cima do biombo da sala de atendimento médico, Maria Cândida instantaneamente trocou o olhar de fogo por um rosto de inacreditável serenidade.

- Léo, estou aqui atrás. Eu ia voltar para o avião, mas antes preciso ligar a alguém da empresa para ficar aqui, pois estou preocupada com o estado de saúde deste senhor, ainda desacordado. E você, conseguiu descansar um pouquinho?

Enquanto falava a Comissária usava o telefone para chamar alguém da companhia aérea, que não demorou mais de dois minutos para chegar. Ao sair com as costas da mão encostadas no lado de Leonel, fechou lentamente a porta da enfermaria, quando soou uma enorme vaia. O piloto curioso, perguntou o motivo de tal comportamento, e ela prontamente respondeu de forma muito doce.

- Acho que foi porque eu não pude ficar mais tempo com o coitadinho dos doentes. A médica de plantão parecia muito perturbada, sem nenhum controle emocional. Então, enquanto eu esperava alguém da empresa, não resisti e comecei administrar compressas nos mais febris. Você sabe como eu sou, Léo?

Leonel agora tinha certeza: Maria Cândida era a mulher perfeita para colocar um ponto final na sua viuvez de cinco anos, quando a esposa teve complicações de parto. Finalmente poderia resgatar a filha dos rigores da avó materna, pois com o casamento a nova esposa deixaria de voar. E com estes planos na cabeça atravessou o finger e, sorridente, sentou na cabine de comando para fazer o próximo trecho.

Na enfermaria, o desacordado Aparecido estava em envolto em crescente mistério. Pelos dados do passageiro foi possível encontrar seu telefone residencial de Brasília. Ao ser comunicada do estado de choque do marido, Cícera deu outras informações.

- Faz menos de uma hora que deixei Aparecido no hospital, aqui na Asa Sul e voltei para casa para pegar a carteira do plano de saúde dele.

Sem saber o que fazer, o despachante da companhia aérea apenas desligou telefone. Passados uns dois minutos ele conclui ser melhor checar os dados do passageiro. A identidade, que agora estava em seu poder, tinha uma pequena diferença do bilhete de passagem emitido, que o sobrenome do documento era Ferreiro e no ticket estava registrado Ferreira. Mesmo sendo um erro muito comum, ainda seria prudente confirmar o número do RG. A conclusão foi óbvia: quem embarcou foi outra pessoa. Comentando em primeiro lugar a descoberta com Dra. Dolores, que estava fazendo uma pausa para aliviar a indignação diante da cenas que participara e assistira alguns minutos. A médica ficou curiosa e foi observar paciente mais uma vez. Mas ao voltar à sala da enfermaria, se deparou com a maca onde deveria estar Aparecido, completamente vazia. Ele havia escapado.

Aparecido, caminhando pelo Aeroporto Internacional de Guarulhos verificou que o local era uma mina de ouro em termos de latas de alumínio abandonadas em bares. Naturalmente, tirou do bolso interno do paletó o saco plástico cuidadosamente dobrado e começou a coleta. Sobre o seu apagão pessoal, tinha consciência de que algo diferente havia ocorrido, mas preferia se manter fiel ao lema da sua existência: seguir em frente toda a vida. Em menos de dez minutos seu recipiente estava lotado. Assim, foi na direção do que achava ser a saída. O próximo passo seria encontrar sua fiel carroça. Cidão até estranhou que aquele local tinha portas que se abriam e fechavam sozinha, o que não costumava existir no aeroporto de Brasília. Chegando na rua verificou que era noite alta e chovia torrencialmente. O melhor era esperar raiar o dia mesmo e depois seguir o caminho que deveria ser seguido.

De volta ao terminal de desembarque, subiu ao piso superior na esperança de encontrar algum local sossegado e seguro para dormir. O que pareceria estranho naquele momento, havia se tornado algo completamente comum, pois chegavam aos milhares o número de exaustos viajantes com seus vôos atrasados mais de 3 horas e sem perspectivas para embarque nos próximos minutos. O local escolhido, então, foi nas proximidades de uma farmácia no terceiro piso.Aparecido se acomodou e dormiu profundamente por algumas horas.

Despertou quando ainda estava escuro, com alguém berrando algo como:

- Irmãos, sigam-me, venham comigo seguir Bispo Ernani, na direção do eleito; Ele em breve vai ressuscitar e nos conduzir ao paraíso. Nós sabemos o caminho que conduz a Ele e temos a missão de conduzir os fiéis. E salve a Igreja Ressuscitar do Divino. Venha a mim, a sua Bispa Xuxa, todos os fiéis dispostos a seguir o caminho e ir em frente.

Aparecido ficou sensibilizado com aquelas palavras por três motivos. Em primeiro lugar sempre se considerou uma pessoa fiel, e ai de quem duvidasse disso. As palavras ditas, sobre seguir em frente, era tudo o que ele pensava. E finalmente, Xuxa era o nome da sua irmã mais velha, que há muitos anos não via. Talvez fosse ela. Assim, chegou vagarosamente no pequeno grupo de pessoas ao redor da Bispa, que quando reparou na sua presença, disse naturalmente:

- Aproxime-se, meu irmão.

A emoção foi forte demais; depois de muitos anos reencontrara pelo mundo a irmã mais velha. Chorando, Cidão ajoelhou-se e abraçou as pernas de Xuxa, aconchegando seu rosto no ventre da religiosa. Ela, por sua vez, posicionou suas mãos acima das orelhas de Aparecido, que, em meio ao pranto, perguntava sobre a mãe e as irmãs Mara e Eliana.

- Estão todas em paz com o criador, agora levanta meu irmão, que é hora de seguirmos o caminho.

Por sorte, Aparecido se colocou em instantes antes de levar uns sopapos do ciumento bispo Ernani, que se conteve ao ver a esposa desvencilhada daquele abusado, ou maluco.

Além do mais, seguir o caminho era com ele mesmo. Então não pensou duas ou uma vez para se juntar aos Bispos e outros três seguidores, cada qual com um jeito mais estranho. Após rápida refeição numa lanchonete, ao lado daquela com contaminação de salmonela, Xuxa pediu os documentos de todos para encaminhar a viagem. Todos eles apresentaram uma caderneta verde cheia de folhas, mas Cidão compareceu com seu velho RG. Perguntado a respeito do passaporte, logo ficou claro para os religiosos que ele nem imaginava do que se falava. Sem problema, depois de algumas horas, Aparecido era presenteado com aquela caderneta bonita, e dentro tinha um monte de carimbos estranhos, muitos dos quais eram desenhados ao invés de terem letras. E o mais importante: sua foto do RG estava lá toda orgulhosa no início da caderneta. Uma troca para melhor, pensou ele. Angélica, toda cheia de palavras, iria ficar com inveja. Nesse pensamento, sentiu falta da irmã caçula. Mas tudo bem, agora estava ao lado da primogênita e ela também falava em seguir em frente.

Foi interrompido em tais reflexões com a ordem de Bispo Ernani de se levantar para seguirem o caminho. Obedecendo, seguiu atrás do grupo até uma sala cheia de barraquinhas parecidas com as das quermesses, só que menores, onde todos apresentavam a caderneta. Ele fez o mesmo e passou rapidamente para outro corredor longo, no decorrer do qual muita gente estava sentada pacientemente. Ao fundo, havia uma pequena fila que começava a se mover e para lá foram. Pouco depois Cidão novamente estava sentado em uma daquelas poltronas que pareciam de dentista. Antes da nave começar a se mover, Xuxa entregou a cada fiel um livro de orações. Não era para abri-lo, segundo as instruções da irmã; apenas segurá-lo firmemente até o destino final, o que garantiria a boa sorte na jornada. Abrir era proibido, repetiu algumas vezes para ser bem clara.

Aparecido sentiu o tranco do trator iniciando o deslocamento do avião rumo à pista de decolagem. Ficou apreensivo, tendo alguns flashes de memória da viagem de Brasília à São Paulo. Mas ainda era noite (e chuvosa) fazendo com que a decolagem não o impressionasse tanto. Ainda mais, estava junto da irmã mais velha que o protegeria e conduziria seu caminho adiante. Então, o estado de choque foi trocado pela fantástica paisagem da floresta amazônica vista do alto ao amanhecer. A comida boa deixou tudo ainda melhor. Mais algumas horas e o jato aterrissou.

Bispo Ernani assumiu a liderança do grupo. Caminharam todos juntos na direção de outras barraquinhas de quermesse (na visão de Aparecido). Cada um dos seguidores foi posicionado em fila diferente, mas Cidão foi o primeiro a ser encaminhado. Vantagem concedida pela irmã, pensou ele. Fazendo como todos, tirou sua caderneta verde pronto para mostrá-la ao senhor com uniforme, como ocorreu horas antes. Mas dessa vez tudo acabou sendo diferente. O oficial de alfândega norte-americano – afinal eles estavam em Miami – ao olhar o passaporte de Aparecido reparou imediatamente na grosseira falsificação. Prontamente acionou a polícia de imigração, centralizando a atenção de todos.Os demais guichês continuaram a funcionar e no estabelecimento da confusão, todos os demais membros da Igreja Ressuscitar do Divino, tiveram seus vistos de entrada carimbados sem despertar maiores atenções. Enquanto isso, três homens fardados imobilizavam Cidão, que se recusava a deixar quem quer que seja olhar e abrir o livro de orações, obedecendo assim às ordens da irmã. Mas ele não era páreo para os atléticos guardas e logo foi desvencilhado da publicação. Ao ser aberta, ao invés de páginas, um pacote muito bem embalado. Seu conteúdo: notas e mais notas de um dinheiro verde, que Aparecido nunca havia visto. Neste exato instante, ele viu a irmã e o resto da comitiva saindo apressadamente daquela grande sala. O berro que deu para chamar Xuxa causou alarde, quase pânico. Imediatamente foi novamente imobilizado, mas desta vez com a ajuda de algemas.

Seu destino: o xadrez do aeroporto de Miami. Na carceragem, pelo menos, conseguia entender as palavras faladas por quem lá estava. Cada qual contava a sua história e alguns se vangloriavam do maior número de detenções pela imigração. Mas Aparecido não gostava de conversa e estava triste. Acostumado à imensidão das rodovias, ele agora estava preso a uma cela sem janelas; impossível ver a luz do sol.Meio sem sentir, sentou no chão, num canto, e passou a cantar as músicas que conheceu pela vida afora. Todos silenciaram para apreciar aquela voz triste, mas serena e de uma afinação impecável. Em um certo momento do show involuntário, Aparecido começou e interpretar a música “É o Amor”, de Zezé de Camargo. A surpresa ficou por conta do acompanhamento de um guarda da carceragem conhecido como Tobby The Little Dog, apelido ganho em função da sua baixa estatura e corpo muito peludo, além do hábito incomum de mostrar suas emoções por meio de latidos e outras expressões caninas. No momento em que Cidão entoava o refrão da canção (é o amor, que mexe comigo...), tobby soltava seu profundo uivo de acompanhamento. Por incrível que possa parecer, existia harmonia entre os dois.

Nenhum comentário: