terça-feira, 14 de agosto de 2007

Capítulo 7: O Comando

O Comando

Após Érika sair do depósito, a surra continuou. A última lembrança de João Carlos foi ter passado a língua entre os dentes e sentir falta de vários deles. Depois disso, mais um soco entre os olhos e tudo se apagou.

Ao acordar a dor era intensa por todo o corpo. Tentou enxergar alguma coisa, mas só via uma luminosidade disforme. Tateando os arredores se descobriu na cabine do próprio caminhão. Então, apesar de tudo, ficou mais feliz e tranqüilo. Afinal de contas, estava vivo e melhor; era pouco provável que os bandidos não voltassem para matá-lo, já que haviam tido toda chance para fazer isso. Era coisa para festejar depois. Naquele momento o único interesse era encontrar, pelo tato, o relaxante muscular que sempre guardava no porta-luvas do Mercedes. Engoliu dois comprimidos de uma só vez, mesmo sem a ajuda de água, e esperou as dores aliviarem e o sono chegar.

Com a cabeça acomodada no lado do banco onde Érika sentava, sentiu o cheirinho da caroneira, e ficou excitado. Sangrando, sem dentes, todo dolorido, praticamente sem enxergar e ainda pensando em rapariga, raciocinou João Carlos, isto é que é ser mesmo um sujeito incorrigível. Após tal reflexão o sono tomou conta novamente, mas soprava uma brisa gelada. Sem forças para se levantar e fechar os vidros do veículo preferiu esticar o braço para baixo do banco e puxar a coberta e o travesseiro que sempre estavam no por lá, na espera para serem usados.

A próxima sensação foi a de um calor de rachar. Com a garganta seca, João Carlos novamente abriu os olhos. As imagens estavam mais nítidas, mas a claridade incomodava muito. Dos males o menor: nada que aquela legítima imitação de Ray-ban não resolvesse. Os óculos escuros ficavam sempre acomodados em cima do quebra-sol.

As dores os braços ainda eram intensas, mas já não tão fortes a ponto de impedir-lhe os movimentos. Então, não teve grandes dificuldades em executar a tarefa. Auxiliado pelas lentes verde escuras, o caminheiro reparou que estava estacionado em uma rua de paralelepípedos. Ao redor, algumas casas de madeira intercaladas por terrenos baldios e logo na frente, a placa do Bar do Zé, diante do qual três homens tomavam seus martelinhos, enquanto jogavam dominó. Desceu do Mercedes com dificuldade. Além do corpo dolorido, o movimento era desagradável pela grande quantidade de sangue coagulado em várias partes do corpo. Entrando pela porta do estabelecimento e se dirigindo diretamente ao balcão, um sujeito muito gordo e com um bigode exagerado já o esperava com toalha, sabonete e uma caixa de primeiros socorros contendo gaze, esparadrapo e mercúrio. Zé, sem perder tempo, apenas apontou para João Carlos a direção do banheiro.

Do chuveiro elétrico não saia muita água. Mas com paciência acabou sendo possível lavar o corpo e verificar o estrago, que foi considerável, especialmente no rosto, pelo que mostrava o pequeno espelho que ficava no sanitário. Além do olho que não abria direito, o outro estava cercado por hematomas. A boca inchada escondia os restos de uma dentição que sempre fora perfeita.

Mas o importante era estar vivo. E aparentemente os ferimentos, apesar de feios, não pareciam tão graves. Na verdade, além de implantes feitos quase um ano depois do evento, João Carlos ainda teve de se sujeitar a duas cirurgias de reconstituição facial, além de outra para a retirada do menisco do joelho esquerdo. Voltando ao bar repleto de esparadrapos, a turma do dominó não escondeu a risada. Ainda mudo, o dono do boteco apontou para o caminhoneiro, indicando uma mesa para ele se sentar, na qual lhe esperava um prato de comida e uma garrafa de refrigerante.

Foi com muita dificuldade que João Carlos conseguiu mastigar a refeição. Mas ele sabia que aquilo era importante para recuperar as forças. Ao agradecer a acolhida e negociar o preço do almoço e do uso do banho, Zé apenas lhe virou as costas e ficou assim até que o caminhoneiro saísse do estabelecimento.

De volta ao 1313, a primeira coisa que reparou foi fato de a caçamba estar completamente carregada e coberta por uma lona novinha. Ao tentar afrouxar as cordas para verificar o conteúdo da carga, ouviu um assovio que vinha da mesa do dominó. De lá, enquanto um dos homens se fazia com a mão o sinal do negativo, os outros dois lhe apontavam armas de grosso calibre. Pronto, já sabia que a encrenca não havia terminado. A única forma de sobreviver era simplesmente dançar conforme a música. Lentamente, buscando a aprovação do grupo, subiu novamente na cabine do caminhão. No assento estava um pacote e em cima dele um papel, no qual havia o seguinte recado rabiscado: "Agora você trabalha para a gente. Esta carga vai ser entregue em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. Saia daí agora e vá direto para a Dutra. Pare no km 300 que, colado atrás da placa de quilometragem, haverá novas instruções para você. No pacote está o pagamento pelo serviço anterior. Aproveite. Mas não abra o bico e nunca mais dê carona, mesmo quando não estiver de serviço conosco. Tenho certeza de que você não gostaria de me ver brabo novamente. Estamos de olho. Então, nada de bancar esperto”.

Sem pensar duas vezes, o motorista ligou o motor e partiu rumo ao seu destino. Chegou no lugar marcado um pouco depois da meia-noite. A saída de São Paulo estava costumeiramente congestionada, ainda mais com a chuva torrencial que caiu no final da tarde, o que sempre causa atrasos. Estacionou no acostamento e foi atrás da placa verificar se realmente tinha algum recado para ele. E lá estava uma folha de caderno dobrada, colada com fita isolante. Com a ajuda da lanterna pôde ler o conteúdo do bilhete. Era o endereço detalhado da entrega da carga em Nova Iguaçu, com a instrução de fazer o trajeto com o farol esquerdo desligado.

A operação para desatarraxar a lâmpada demorou quase uma hora. Depois disso seguiu viagem, dando preferência para andar em comboio, já que a sua visibilidade estava duplamente prejudicada: além da deficiência do farol, seu olho direito ainda estava bastante prejudicado, chegando a comprometer sua percepção de perspectiva tridimensional, fundamental para uma pilotagem segura. Passados uns 40 km do reinício da viagem, o grande susto: uma barreira policial estava desviando todos os caminhões para o acostamento. Acostumado com essa prática, João Carlos automaticamente tirou do bolso os documentos do veículo. Mas começou a pensar: sem documentação da carga (sabe lá Deus o que era); o farol desligado; e a sua cara espancada. Tudo isso era um prato cheio de incomodações.

De pronto decidiu que caso fosse parado iria se antecipar, entregando-se às autoridades e tentar esclarecer toda a confusão. Realmente, o primeiro policial que o viu não perdeu tempo em mandá-lo estacionar. João Carlos parou o caminhão e já foi abrindo a porta para tentar se explicar ao homem fardado com colete. Mas antes que conseguisse desembarcar, um segundo guarda lhe fez um nervoso sinal para seguir adiante. Rapidamente ligou novamente o motor e seguiu a instrução, passando por todos os colegas de estrada que, aparentemente, sem exceção, estavam tendo a documentação e carga conferidas.

O resto do caminho foi feito sem contratempos. Chegou em Nova Iguaçu no início da manhã e já que as instruções não permitiam companheiros na caçamba, ficou impedido de pegar os serviços de algum chapa com conhecimento da cidade. O jeito foi ir pedindo informações até o endereço marcado. A busca chegou a demorar mais de 1h e meia, mas finalmente havia encontrado a rua enlameada, lotada de barracos, além de um esgoto que corria a céu aberto. Na medida em que avançava lentamente, apareciam de todo lado homens portando fuzis e metralhadoras, ao mesmo tempo em que moleques preparavam rojões, prontamente disparados após a sua passagem. Não havia como voltar atrás. O jeito era seguir em frente para ver aonde ia dar toda aquela encrenca. Mais meio quilômetro e se deparou com cavaletes que trancavam o seguimento da rua. Junto à barreira, um sujeito muito magro aparentando entre 55 e 60 anos orientou a manobra de entrada no depósito (que mais parecia uma maloca) logo à direita. João Carlos chegou a tremer de medo quando os portões fecharam. Se ele estava marcado para ser morto, o momento seria aquele.

Mas a surpresa foi grata: o mesmo gordão que havia liderado a surra de dois dias antes estava lá e foi prontamente conferir a carga. Verificando que tudo estava correto, abraçou o caminhoneiro e o apresentou a todos ao redor como seu novo irmão, que deveria ser chamado de Carlito. E caminhando na direção do fundo do depósito abriu outra porta que dava acesso a um ambiente muito mais agradável. Tratava-se de uma piscina em volta da qual se espalhavam cadeiras preguiçosas, poltronas e outros móveis, muitos dos quais ocupados por mulheres de corpo atraente que centravam suas atenções ao redor de dois homens, aparentemente na faixa dos 30 anos. Por fim, outras duas mulheres vestindo uniforme surrado de coelhinha, circulavam pelo ambiente oferecendo bebidas e quitutes.

Ao reparar na entrada do caminhoneiro com a cara deformada, todas as moças se levantaram e falaram em coro:

- Seja bem-vindo Senhor Carlito.

Após esse rápido cerimonial, uma mulher parda e cabelos encaracolados se aproximou, apresentando-se de forma mais íntima.

- Olá, sou Shirley e estou feliz por ter sido escolhida como sua primeira companheira de nosso Comando. Minha função, além de te tratar bem - e farei isto com todo o prazer – é explicar como funcionam os nossos negócios e o seu papel na organização. Até segunda ordem, a partir de agora, eu é que transmitirei as ordens do chefe e você não deve falar sobre serviço com mais ninguém além de mim. Outra coisa: já localizamos sua família em Campo Grande e eles concordaram em receber uma mesada para ficarem calados enquanto você não volta para casa. E meu bem, tenho certeza de que vais querer ficar comigo e minhas amigas pelo resto da vida. Agora é hora de deixar o papo para mais tarde e descansar.

Shirley pegou João Carlos, ou seja, Carlito, pela mão e o conduziu a um quarto com cama de casal redonda, refrescado por ar-condicionado e o fez deitar, fazendo ela o mesmo, abraçando-o na altura do peito. Pouco tempo depois o novo membro do Comando dormia a sono solto.

O tempo voa e num piscar de olhos Carlito comemorava a entrada de 2007 com champanhe francês a bordo de seu iate, normalmente atracado em Angra dos Reis. Shirley havia sido uma ótima professora e agora era mãe de duas filhas suas. Além disso, o antigo caminhoneiro mostrou grande habilidade para os negócios do Comando. Deixou as estradas em 1992, apenas dois anos após ter entrado para a organização. Em vez de conduzir caminhões, aproveitou o dinheiro ganho e comprou uma grande frota, criando sua própria transportadora, que também dispunha de aviões e fazendas espalhadas pela região Norte e Centro-Oeste do país, sempre a pouca distância das fronteiras com a Colômbia, Bolívia, Peru e Paraguai.

Usando como fachada o transporte de grãos e mudanças, comandava um verdadeiro império do frete de armas e drogas dentro da América Latina. Tal poder lhe gerou muitas amizades no meio político brasileiro e dos países em volta. Suas gordas contribuições às campanhas eleitorais, além do monitoramento a opositores, rendiam, em troca, carta branca para agir livremente em várias regiões estratégicas.

Mas agora, no começo de 2007, as coisas começavam a ficar mais difíceis. A rivalidade de outras gangues não era problema no seu caso. A grande questão do momento passou a ser um fenômeno novo. Ex-policiais haviam se rebelado contra a repressão abusiva imposta pelos chefes de boca de fumo das favelas e passaram a reagir, mesmo estando desligados da sua corporação. Com conhecimento de técnicas de combate, conseguiram seus próprios fornecedores de armas e passaram a trocar tiros com os traficantes, ao mesmo tempo em que recebiam apoio em dinheiro da população das favelas.

No total, a operação de Carlito ainda era lucrativa, especialmente porque as milícias no norte da Amazônia estavam pedindo muito armamento pesado. O problema é que parte do pagamento era em cocaína e o produto estava cada vez mais difícil de escoar pelos canais de distribuição tradicionais. Com criatividade e contratando meninos e meninas de família da Zona Sul do Rio, ainda era possível bancar o negócio. Mas o lucro era muito menor e alguns políticos estavam dando um jeito de trocar de lado, o que era o mais preocupante ainda.

O Comando estava dividido em suas opiniões e isso sempre era perigoso. Os mais antigos eram favoráveis a sair gradativamente do negócio, limpando as principais empresas de fachada que se tornaram lucrativas por si só. Porém, os líderes que ainda não tinham feito fortuna pensavam diferente; estavam dispostos a pegar em armas e matar os inimigos, fossem eles ex-policiais ou parlamentares traidores. As duas visões de futuro eram evidentemente incompatíveis e não demoraria para que isso acabasse em luta interna. Neste caso, João Carlos passava a ser um dos alvos preferidos para acabar a sete palmos.

Como tentativa de apaziguar os ânimos, a cúpula do Comando - da qual Carlito participava - arquitetou a Operação Carnaval, que deveria ocorrer no meio das festas carnavalescas, quando todo o Rio de Janeiro se esquecia temporariamente de suas disputas dedicando-se aos festejos na Marquês de Sapucaí.

O plano era composto de três estágios. Caso primeiro desse errado se passaria para o segundo e assim por diante.

Como meta inicial, a idéia era negociar a paz com as milícias das favelas que antes eram dominadas por traficantes rivais. O Comando não atacaria a eles, conquanto que os ex-policiais não interviessem nos seus pontos de comércio ainda ativos em outras favelas. Junto com tudo isso, haveria ainda venda de armas de primeira linha a preços favorecidos, derrubando a concorrência.

Caso a negociação não desse certo, a segunda alternativa seria fazer um ataque fulminante aos líderes jovens do próprio Comando. Para isso, não seria difícil contar com apoio de alguns segmentos da própria polícia. Mas todos deveriam estar monitorados para serem baleados praticamente na mesma hora. Na lista, havia 15 marcados para morrer. Apenas uma falha, ou vazamento de informação, e o feitiço viraria contra o feiticeiro.

Por fim, o último estágio, caso os dois anteriores dessem errado seria largar tudo e embarcar no Sêneca pronto para fugir na direção da Argélia. Daí, o melhor seria aproveitar as reservas depositadas nos paraísos fiscais para usufruir de uma rica aposentadoria, ou reiniciar os negócios depois de uns anos, se ainda houvesse espaço para isso.

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